Por Noreda Somu Tossan
Por que sorrimos quando vemos
alguém sorrir? Ou por que ficamos com olhos marejados quando a protagonista de
um filme chora? Já reparou que nos retesamos quando vemos alguém com dor ou
sentimos uma vontade incontrolável de bocejar quando alguém boceja? Afinal, o
que nos leva a agir de acordo com o que as outras pessoas fazem?
Isso acontece porque, quando
vemos alguém fazendo algo, automaticamente simulamos a ação no cérebro, é como
se nós mesmos estivéssemos realizando aquele gesto. Isso quer dizer que o
cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos mentalmente
toda ação que observamos. Essa capacidade se deve aos “neurônios-espelho”,
distribuídos por partes essenciais do cérebro
(o córtex pré-motor e os centros para linguagem, empatia e dor). Quando
observamos alguém realizar essa ação, esses neurônios disparam (daí o nome
“espelho”). Por isso, essas células cerebrais são essenciais no aprendizado de
atitudes e ações, como conversar, caminhar ou dançar. Eles permitem que as
pessoas executem atividades sem necessariamente pensar nelas, apenas acessando
o seu banco de memória.
O cérebro funciona como um “simulador de ação”: ensaiamos ou imitamos
mentalmente toda ação que observamos.
Os neurônios-espelho foram
descobertos por acaso pela equipe do neurocientista Giacomo Rizzolatti, da
Universidade de Parma, na Itália. O grupo colocou eletrodos na cabeça de um
macaco, um aparato que permitia acompanhar a atividade dos neurônios na região
do cérebro responsável pelos movimentos através de um monitor. Cada vez que o
macaco cumpria uma tarefa, como apanhar uvas-passa com os dedos, neurônios no
córtex pré-motor, nos lobos frontais, disparavam. Quando um aluno entrou no
laboratório e levou um sorvete à boca, o monitor apitou (foi uma surpresa para
os cientistas, porque o macaco estava imóvel). O mais intrigante é que sempre
que o macaco assistia o experimentador ou outro macaco repetir essa cena com
outros alimentos os neurônios disparavam.
Mais tarde, exames de neuroimagem
mostraram que nós temos neurônios-espelho muito mais sofisticados e flexíveis
que os dos macacos. “Nosso conhecimento do motor e a nossa capacidade de
‘espelhamento’ nos permitem compartilhar uma esfera comum de ação com os
outros, dentro do qual cada ato motor ou cadeia de atos motores, sejam eles
nossos ou dos demais, são imediatamente detectados e intencionalmente
compreendidos antes e independentemente de qualquer mentalização”, observa
Rizzolati.
A equipe do neurocientista
Giovanni Buccino, da Universidade de Parma, usou Ressonância Magnética
Funcional (RMF) para medir a atividade cerebral de voluntários enquanto eles
assistiam a um vídeo que mostrava sequências de movimentos de boca, mãos e pés.
Dependendo da parte do corpo que aparecia na tela, o córtex motor dos
observadores se ativava com maior intensidade na região que correspondia à
parte do corpo em questão, ainda que eles se mantivessem absolutamente imóveis.
Ou seja, o cérebro associa a visão de movimentos alheios ao planejamento de
seus próprios movimentos.
Outras experiências mostram que
os neurônios-espelho dos macacos ainda são ativados diante de um estímulo
indireto, que é associado a uma tarefa. Por exemplo, o som de uma casca de
amendoim se quebrando. Isso se deve a neurônios-espelho, audiovisuais que
seriam importantes na comunicação gestual desses animais. Nos seres humanos
isso também é possível: os neurônios são ativados quando a pessoa imita,
complementa uma ação ou quando apenas imagina ela própria realizando essas
mesmas ações.
“Os neurônios-espelho mudaram o
modo como vemos o cérebro e a nós mesmos, e têm sido considerado um dos achados
mais importantes sobre a evolução do cérebro humano”, diz o neurocientista
Sérgio de Machado, pesquisador e pós-doutorando do Laboratório de Pânico da
UFRJ. “Se a tarefa exige compreensão da ação observada, então as áreas motoras
que codificam a ação são ativadas. Isso indica que há uma conexão no sistema
nervoso entre percepção e ação, e que a percepção seria uma simulação interna
da ação”, completa.
Questão de empatia
Alguns pesquisadores especulam
quanto à verdadeira função desses neurônios. Podemos dizer que o observador
estaria simulando mentalmente a ação ou estaria se preparando para agir? O
pesquisador húngaro Gergely Csibra, do Departamento de Psicologia do Birkbeck
College, no Reino Unido, sugere que o papel dos neurônios-espelho talvez não
seja exatamente o de espelhar ou simular a ação, mas de antecipar as possíveis
respostas a essa ação. O que nos leva a acreditar que o cérebro é um grande
gerador de hipóteses que antecipa as consequências da ação e que permite a
tomada de decisão.
Devido a essa capacidade, podemos
imaginar aquilo que se passa na mente do outro, colocando-nos no lugar da outra
pessoa, compreendendo suas ações. Por exemplo: se vemos uma pessoa chorar por
algum motivo, os neurônios-espelho nos permitem lembrar das situações em que
choramos e simular a aflição dela. Sentimos empatia por ela, sentimos o que a
pessoa está sentindo. “A capacidade de simular a perspectiva do outro estaria
na base de nossa compreensão das emoções do outro, de nossos sentimentos
empáticos”, diz Machado.
Isso faz toda a diferença, porque
é graças a essa capacidade que podemos estabelecer relações sociais. “A
predição das emoções do outro é fundamental para o comportamento social. A
pessoa não cometerá um ato que é doloroso ou prejudicial ao demais. Isso se
deve à empatia, que é a capacidade de interpretar as emoções alheias. O ser
humano é dotado da teoria da mente, isto é, a capacidade de se colocar
mentalmente no lugar de outra pessoa. Ela é a base do julgamento de intenções”,
explica o neurocientista Renato Sabbatini, professor da Faculdade de Medicina
da Unicamp.
A empatia seria determinada
biologicamente desde o nascimento. “É preciso existir uma maquinaria inata, que
nos permite certas capacidades, porque nem tudo em nosso comportamento é
aprendido”, observa Sabattini. Ele lembra que os neurônios-espelho ainda são um
mecanismo-chave para a aprendizagem. Um exemplo disso é que, desde bebês, somos
capazes de imitar expressões faciais dos adultos, instintivamente reproduzimos
caras e bocas. Isso acontece porque os neurônios-espelho começam a funcionar
logo na primeira infância. Podemos, por exemplo, ampliar as nossas chances de
sucesso em alguma tarefa, apreendendo com os “experts”.
A empatia envolve regiões do
cérebro que existem há mais de 100 milhões de anos e funciona como a “cola” que
mantém as sociedades unidas, segundo o primatólogo holandês Frans de Wall, em
seu livro “A Era da Empatia”. Como Wall, os cientistas partem do princípio de
que os nossos cérebros são produto da seleção natural e que as pressões do
ambiente social determinaram quais características deveriam ser mantidas para
as gerações futuras (e uma dessas marcas seriam os neurônios-espelho). “A maior
parte dos gestos motores, como amarrar os sapatos, é aprendido por imitação, ou
seja, tentativa e erro. Isso prevalece no reino animal, principalmente nos
vertebrados”, diz Sabbatini.
“Os estudos desses neurônios nos
oferecem uma grande contribuição na compreensão da emoção: hoje sabemos que
temos um sistema que partilha percepção e ação. O espelhamento permite o
compartilhamento de emoções, presente no estado de empatia. Isso nos
possibilita formular teorias mais compatíveis com os achados biológicos”, diz a
psicóloga Cláudia Passos, que se dedica ao estudo de Ética e Biotecnologias em
seu pós-doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Filosofia pela UFRJ.
Em “O Cérebro Empático” – Como,
Quando e Por que?, a neurocientista alemã Tânia Singer e a filosofa francesa
Frederique de Vignemont propõem quatro condições para que a empatia aconteça:
1-) Alguém está num estado afetivo,
como medo, raiva ou tristeza, por exemplo.
2-) Esse estado é isomórfico ao
estado afetivo da outra pessoa
3-) Esse estado é produzido pela
observação ou imaginação do estado afetivo de outra pessoa
4-) A pessoa sabe que a outra
pessoa é fonte do seu próprio estado afetivo.
“Os achados de imagem cerebral
permitem que sejam identificadas áreas de ‘espelhamento’ do cérebro que são
ativadas no estado de empatia, mas não se sabe exatamente como essas áreas
cerebrais atuam nos estados da empatia descritos por essas pesquisadoras. Pode
ser que um dia possamos ter uma precisão maior do que acontece no cérebro
empático”, prevê Cláudia.
Moralidade
Estudos sugerem que as pessoas
ajudam mais as outras quando têm empatia por elas, o que explica porque a
empatia geralmente é associada ao senso moral, justiça, altruísmo e cooperação.
As pesquisas com neurônios-espelho despontam como aliado no debate quanto à
natureza de decisões morais. Elas reforçam a tese de que os comportamentos
morais têm um traço afetivo porque envolvem a capacidade do indivíduo de sentir
as emoções do outro, e dependem do sistema de recompensa (circuitos do cérebro
ligados à sensação do prazer).
“Alguns teóricos defendem que as
decisões morais são de natureza cognitiva e envolvem um pensamento moral. Mas
os experimentos com neurônios-espelho fortalecem a ideia de que as emoções
estão na base do sentimento moral. Isso significa dizer que não aprendemos
apenas racionalmente, mas também somos educados sentimentalmente”, diz a
pesquisadora.
Apesar do entusiasmo da
comunidade científica, a filosofia ainda despreza as descobertas das ciências
cognitivas e a psicologia moral. “A filosofia sempre operou com distinção entre
fato e valor. Esses achados empíricos sobre neurônios-espelho são vistos com
desconfiança, embora haja alguns naturalistas que tenham contribuído no diálogo
com as ciências”, completa.
A “corrida” em busca desses
neurônios em diferentes áreas do cérebro ajudou a lançar luz sobre uma questão
que há muito intriga os cientistas: o autismo. Um estudo com ressonância
magnética funcional mostra uma falha do mecanismo de espelho nessas crianças.
Ao contrário do que ocorre em crianças normais, as crianças autistas não imitam
gestos no espelho quando se veem face a face. “Crianças com autismo têm grande
dificuldade para, se expressar, compreender sentimentos como medo, alegria ou
tristeza, não percebem o significado emocional das ações alheias. O autista tem
dificuldade de interagir e se assusta com expressões faciais e ruídos. Tudo
indica que há uma falha no sistema de neurônios-espelho”, diz Machado.
Pesquisadores observaram crianças
autistas e crianças normais enquanto elas assistiam ao experimentador agarrar
um pedaço de comida para comer ou agarrar um pedaço de papel para colocar em um
recipiente. A atividade elétrica do músculo envolvido na abertura da boca foi
gravada. Os resultados mostraram a ativação dos neurônios correspondentes ao
músculo da boca ao ver a comida em crianças normais, mas isso não aconteceu com
as crianças autistas. Em outras palavras, enquanto a observação de uma ação
feita por outra pessoa interferiu no sistema motor de uma criança normal que
observava o movimento, o mesmo não aconteceu não no caso de uma criança
autista.
“O autismo está associado a uma
deficiência na habilidade de leitura da mente, na capacidade de interpretar as
emoções do outro. É verdade que algumas crianças se mostram extremamente
eficientes em outras habilidades cognitivas não sociais, como é o caso dos
portadores de Síndrome de Asperger. Ainda assim, relatos de pessoas com esta
síndrome atestam pouca ou nenhuma capacidade de introspecção”, diz Sabbatini.
Pessoas com síndrome de Asperger têm os mesmos traços dos autistas, mas com uma
diferença: elas possuem grande capacidade cognitiva, o QI pode variar de normal
até níveis muito mais altos.
Distúrbios neurológicos
Além de compreender melhor nosso
comportamento, os estudos sobre neurônios-espelho podem ajudar na solução de
questões de ordem prática, como a recuperação de pacientes com perda da função
motora. Em 1992, o neurocientista indiano Vilayanur Ramachandran, diretor do
Centro do Cérebro e da Cognição da Universidade da Califórnia, nos Estados
Unidos, criou uma técnica que usa um espelho para tratamento de dor fantasma
(pessoas que perderam um braço, por exemplo, sentem dores nesse membro como se
ele ainda estivesse lá). A técnica permite que uma rede de neurônios
responsáveis pelo controle de uma mão possa ser usada nos movimentos de outra
mão numa determinada tarefa. A ideia é reeducar o cérebro com uma simples tarefa,
em que a pessoa realiza movimentos com o braço saudável, vendo no espelho como
se fosse o braço lesionado. (muito bem ilustrado num episódio de Dr. House).
“Assim é possível enganar o
cérebro, fazendo com que ele imite os movimentos do braço lesionado através do
reflexo do braço não lesionado no espelho”, diz Machado. A técnica também tem
sido empregada para recuperação do movimento em pessoas que sofreram AVC
(derrame). Alguns pacientes são mais beneficiados que outros, dependendo do
local da lesão e da duração do déficit após o AVC. Estimativas atestam que
cerca de um décimo da população mundial será vítima de déficit motor por causa
do AVC.
Às vezes, a perda do movimento
está ligada também à alteração de visão. Isso acontece porque, nas fases
iniciais do derrame, o cérebro apresenta um edema, deixando também
temporariamente alguns nervos atordoados e “desligados” que os especialistas
chamam de “paralisia aprendida”. “Caso exista ainda neurônios-espelho
sobreviventes, a terapia espelho poderia revivê-los”, diz Machado.
Durante a terapia, essas células
tanto podem responder a gestos já praticados quanto a não aprendidos. O que
significa que a capacidade desses neurônios de reagir à observação de uma
tarefa não depende obrigatoriamente da nossa memória. A tendência é imitar,
inconscientemente, aquilo que observamos, ouvimos ou percebemos. “Tanto existe
reação como aprendizagem durante o processo de reabilitação, há uma dupla
função”, diz Machado. Mas ele ressalva: “Se há uma lesão nesse circuito, isso
vai levar a um tipo de interferência, talvez não haja integração das
informações”.
A antiga visão de que o cérebro é
dividido em módulos autônomos com funções específicas e que interagem pouco uns
com os outros vem do século passado e a neurologia ainda tem se baseado nela.
Uma lesão em um dos módulos traria um problema neurológico irreversível. “Os
achados, no entanto, sugerem que é necessário repensar a visão de que o cérebro
trabalha de forma seriada e hierárquica com seus módulos e substituí-la por uma
nova visão mais dinâmica. O cérebro trabalha de forma integrada em paralelo e
não de forma seriada. Existe atividade de várias áreas do cérebro ao mesmo
tempo”, diz Machado. Segundo ele, ao invés de pensar os módulos cerebrais como
inflexíveis, devemos pensar em um equilíbrio dinâmico como conexões sendo
constantemente formadas e reformadas em respostas a mudanças ambientais.
Fonte: (Revista Psique Ciência e Vida edição 76, págs. 24 à 31, pela jornalista Roberta de Medeiros). Sou assinante da Revista e recomendo à todos)