sábado, 23 de outubro de 2021

A importância de nos tornarmos uma civilização multiplanetária, mas sem nos esquecermos de aprender a viver na Terra

 




Não considero um sonho irrealizável o homem vir a colonizar outros planetas criando comunidades fora da Terra. O saudoso físico Stephen Hawking (1942 – 2018) defendia a realização urgente dessa ideia num período de 100 anos, argumentando como justificativa evitar potenciais ameaças que seriam fatais para a civilização, a exemplo dos efeitos das mudanças climáticas, colisões com asteroides, possíveis epidemias e o excesso de população.


No entanto, discordo que a nossa segunda "Arca de Noé", a princípio, esteja fora de casa. Pois considero que os problemas de relacionamento da humanidade com o meio ambiente, as guerras com uso de armas de destruição em massa e a nossa conduta diante das epidemias, a exemplo de como tem sido diante do enfrentamento da Covid-19, tratam-se de mazelas que se originam dentro do próprio ser humano. Ou seja, nós é que promovemos o atual momento de risco, sendo certo que uma parcela significativa dessa responsabilidade pesa sobre os ombros dos governantes mundiais.


Talvez a humanidade esteja passando pelo chamado "grande filtro", dentro do paradoxo de Fermi, tentando escapar da auto-destruição. Pois, de fato, quando desenvolvemos grandes tecnologias, passa a existir o fundado perigo de uma auto-aniquilação como poderia ocorrer numa insana guerra sem vencedores, se as potências militares fizerem uso de todo o arsenal atômico que possuem, visto que os poucos sobreviventes se tornariam donos de uma Terra devastada que, dificilmente, se recuperaria em mil anos.


Por outro lado, embora discordando da urgência de Hawking em colonizar a Lua, Marte e alguns asteroides situados antes da órbita de Júpiter, a exemplo de Ceres, penso que não são projetos descartáveis para a humanidade no decorrer deste século e acho que os empreendimentos científicos nessa área precisam avançar. Inclusive considero que o Brasil não deve ficar de fora visto que poderemos contribuir e até nos beneficiar com os resultados de futuras explorações espaciais.


Ainda que o mundo tenha problemas graves como a fome, sabemos muito bem que as desigualdades sociais não são causadas pela exploração do espaço, que consome valores ínfimos do orçamento dos países, de modo que é a má distribuição da riqueza produzida o verdadeiro motivo da pobreza extrema no planeta. Algo que requer políticas de geração de trabalho, de programas de renda mínima e de assistência social, além de bons programas educacionais capazes de incluir com maior amplitude possível crianças, jovens e adultos em atividades produtivas.


Em todo caso, os acontecimentos vão se sucedendo de maneira dinâmica no mundo de modo que as pesquisas científicas ocorrem independentemente da solução das questões sociais e políticas. Por isso, considero provável provável que, até 2100, o mundo deverá ter, no mínimo, uma base científica de funcionamento permanente em Marte. Já os projeto de construírem uma cidade sustentável por lá, por meio de escavações no interior da rocha das falésias com poderosas redomas de vidro, suponho que requeira bem mais tempo, a não ser se houver atrativos econômicos como a mineração ou o desenvolvimento de grandes indústrias no planeta vermelho.


Resta, todavia, a indagação sobre como o homem conseguirá criar comunidades sustentáveis fora da Terra, se aqui a humanidade ainda não apreendeu a conviver de maneira harmônica com a natureza. Ou iremos expandir o nosso estilo de vida destrutivo para o Universo nos tornando futuramente superpredadores a ponto de repetirmos o que foi feito há 500 anos no continente americano?!


Será que migrar para os desertos e cuidarmos melhor das áreas úmidas com maior biodiversidade, usando de fontes renováveis de energia, não seria o primeiro passo para termos um modelo civilizacional ecológico?!


Sem ter como dar todas as respostas, deixo o leitor com essas dúvidas reflexivas para melhor pensarmos o futuro da nossa espécie.


OBS: Imagem acima referente a uma ilustração divulgada na internet sobre como poderá ser a cidade marciana de Nüwa, conforme um plano anunciado pelos Emirados Árabes Unidos (EAU), em 2017

domingo, 3 de outubro de 2021

Ideologia identitária agride base da democracia liberal

 



Por Antonio Risério




Para autor de "As Sinhás Pretas da Bahia", obsessão por diversidade pode levar a uma ditadura de representação herdeira do fascismo



[resumo]Transformação da ideia de diversidade em dogma nas últimas décadas levou a uma compreensão fraudulenta da história ocidental e a uma tentativa de reger a sociedade por meio de lógica de representação estatística, com cotas sexuais ou raciais. Esse projeto de Estado identitário, herdeiro da organização corporativa do fascismo italiano, ameaça o modelo de democracia liberal.


O cardápio contestador dos “sixties” foi variadíssimo. Havia tanta coisa em jogo, que a única definição possível era falar da contracultura e do Maio de 1968 como espaços da manifestação do múltiplo e do diverso.

E foi justamente por aí que veio a palavrinha mágica, diversidade, emergindo “a posteriore” como denominador comum do repertório do final daquela década —porém não mais como definição ou classificação ocasionais, e sim como ideologia.

Desenhou-se um novo campo magnético, com a “diversidade” no centro, articulando na esfera política, como disse o sociólogo Mathieu Bock-Côté, todo um leque de manifestações e reivindicações.

Sob o conceito (e, depois, dogma) da diversidade, a multiplicidade ganhava uma suposta unidade. Aqui, a partir da década de 1980, já não se tratava mais de reconhecer a existência da diversidade no mundo, mas de defendê-la programaticamente, impondo-a ao conjunto da sociedade.

Esse eixo político esbarraria num inimigo comum —o “homem branco”, e numa inimiga comum, a “civilização ocidental”. Tratava-se da incorporação do legado contracultural, que se expressara no slogan “Western Civilization Is Over”.

A estratégia, desde então, é tirar proveito máximo do “masoquismo ocidental”, para lembrar a expressão cara ao filósofo Pascal Bruckner, o autor do livro “A Tirania da Penitência: Ensaio Sobre o Masoquismo Ocidental”.

Defende-se agora que a história do mundo ocidental não passa de um filme de terror. A história brasileira, inclusive. Quase tudo com base em leituras fraudulentas, dualismos primários e ignorância, muita ignorância, por parte de militantes que pouco se importam com a exatidão histórica. Curiosamente, são intransigentes com as democracias que temos, mas complacentes com ditaduras extraocidentais.

Os ataques ao Ocidente, lugar por excelência da culpa, caem sempre em solo propício. Nada mais ocidental do que criticar, arrasadoramente, o Ocidente. Nossos grandes pensadores sempre fizeram isso.

Agora, é a vez dos identitários multiculturalistas, todos ocidentalíssimos, embora fingindo que não, repetirem que o Ocidente não fez mais do que humilhar, escravizar, assassinar os outros povos, todos invariável e rigorosamente angelicais e oprimidos.

A história do Brasil, para eles, resume-se à chacina de índios, à opressão das mulheres e à tortura de negros, perpetradas por uma elite branca racista e patriarcal. Só. E agora as vítimas exigem sua indenização, compensação retrospectiva de vantagens perdidas.

É a partir daí que se projeta a sonhada transformação político-social da sociedade e do mundo. Para chegar lá, no entanto, teremos de passar por um intervalo autoritário, que se responsabilizará pela submissão compulsória de todos aos dogmas sagrados do multicultural-identitarismo.

É a velha conversa da “ditadura do proletariado” em nova roupagem, ditadura diversitária, com apoio da universidade, da mídia e de boa parte do empresariado (veja-se “The Dictatorship of Woke Capital”, de Stephen Soukup).

A ideologia diversitária se revela, de fato, adversária plena da democracia liberal. Nessa visão, é a “diversidade” que deve reger o mundo —e o princípio de sua regência está na estatística. Sim: entra em cena uma outra concepção de representação ou representatividade social, rigorosamente numérica.

A conversa pode então ser resumida nos seguintes termos: se os pretos representam x% da população brasileira, então eles têm de ser x% nas cátedras universitárias, no Poder Judiciário, na produção cinematográfica, na mídia, no Congresso Nacional e assim por diante. Um princípio que, eventualmente, pode vir a ser irônico, mas será sempre revelador.

Irônico como no caso recente do Chile, que programou eleições para uma Assembleia Constituinte que deveria ser rigorosamente paritária, em matéria de gênero. As mulheres queriam evitar que homens controlassem a feitura da nova carta constitucional do país. Acontece que os resultados das urnas surpreenderam: as mulheres foram mais votadas que os homens.

Logo, para obedecer ao princípio paritário previamente acordado, 11 mulheres se viram obrigadas a abrir mão de seus mandatos em favor de homens menos votados.

A verdadeira soberania democrática teve de dar lugar a um democratismo estabelecido de antemão, com bases em cotas. A regra básica da democracia ocidental —uma cabeça, um voto— foi arquivada, substituída por um modelo extraído, em última análise, do repertório mussolinista.

Modelo que neste momento, no sentido da construção de um Estado multicultural-identitário, traz também, ao lado da divisão sexual, o critério de raça e cultura, designando uma fatia de cadeiras da Constituinte chilena para os agora chamados “povos originários” (todos imigrantes, como bem sabem historiadores e antropólogos).

Ou seja: temos a recusa da democracia liberal, com sua disposição representativa já secular, fundada no valor individual.

Não há como conciliar o sistema eleitoral de “uma cabeça, um voto” e um Congresso com assentos predeterminados, com segmentos representacionais previamente loteados.

Claro: se a ocupação do Congresso Nacional, de assembleias estaduais etc., vai se pautar por um sistema de cotas, repartindo cadeiras em função de raça e sexo, o princípio democrático tradicional perde automaticamente a validade.


Com essa obsessão multiculturalista por separar drasticamente as coisas, obscurecemos a história, falsificamos a realidade e cometemos erros primários.


Estamos nesse caminho no Brasil. O primeiro grande passo foi estabelecer o regime de cotas no âmbito inicial das candidaturas: cada partido é obrigado a apresentar x% de candidatas mulheres ou de candidatos pretos, por exemplo.

O passo seguinte, logicamente, e agora no rastro da experiência chilena, será fixar números de cadeiras por raça, sexo e orientação sexual, tornando as casas legislativas receptáculos pré-compartimentados a serem preenchidos segundo a natureza e a extensão de seus cômodos.

Sim: o Congresso se transformará numa casa de cômodos —alguns raciais, outros sexuais. E penso que uma nova eleição de Lula irá desembocar nisso, na promulgação de separatrizes congressionais, de acordo com a base estatística de cada grupo social.

Para quem protelava a iniciativa de qualquer reforma política, o que se anuncia no horizonte é uma tempestade e tanto —e para azar da democracia. É o fantasma do Estado fascista retornando ao palco. O corporativismo fascista se desdobra no corporativismo identitário.

Com isso, pode ocorrer o seguinte: uma sociedade votar em peso na social-democracia, mas, em consequência de um acordo censitário, ter de aceitar 50% de candidatos homens, em sua maioria de centro-direita, por exemplo. Bem, isso não é democracia, é representacionismo estatístico —ditadura diversitária.

O corporativismo fascista foi um sistema de representação de classes e grupos de interesse, com o objetivo de transcender tanto o individualismo quanto a luta interclassistaA finalidade última, como se sabe, seria consolidar instituições permanentes que abrigassem representantes das diversas classes, no caminho da realização da harmonia social.

O corporativismo diversitário é uma retomada do corporativismo fascista em novas bases, com os antigos agrupamentos profissionais do projeto de Mussolini substituídos por segmentos raciais e sexuais, superando o individualismo da democracia liberal pelo grupocentrismo identitário.

Teríamos um redimensionamento das instituições a partir de partilhas censitárias. A estatística reinará acima de tudo, como o grande princípio organizador do sistema político. Alarga-se assim, sempre mais, o arco de ataques à democracia representativa.

É claro que alguma discussão poderá ser até enriquecedora. De minha parte, não vejo como ameaça o debate que teremos de encarar acerca da democracia liberal e do neomandarinato meritocrático chinês, por exemplo.

A China coloca um tremendo problema em nosso caminho —e não devemos tentar contorná-lo. Em “When China Rules the World”, Martin Jacques sublinha que o Estado chinês mantém uma relação com a sociedade muito diferente da nossa. “Desfruta de muito maior autoridade natural, legitimidade e respeito, muito embora nem um só voto tenha sido dado ao governo.”

A cultura política chinesa é de base milenar. Como diz o cientista político Zhang Weiwei, em “The China Wave”, é inimaginável que a maioria dos chineses aceite um sistema democrático multipartidário, com troca de governo a cada quatro anos. “A democracia é um valor universal —o sistema democrático ocidental, não”, escreve Weiwei.

Roberto Mangabeira Unger concordaria, mas ninguém pode afirmar categoricamente que a democracia ocidental não é exportável, ou que seja impossível promover sua imposição em países extraocidentais.

O Japão nega isso. É modelo muito bem-sucedido de democracia imposta pelas armas, em seguida à Segunda Guerra Mundial. Com a retomada de Cabul pelo Talibã, o fato foi negritado por Giovanni Sartori, em artigo no jornal italiano Corriere della Sera: “...o caso do Japão demonstra mais e melhor que qualquer outro que a democracia não é necessariamente vinculada ao sistema de crenças e valores da civilização ocidental. Os japoneses continuam culturalmente japoneses, mas prezam, ao mesmo tempo, o método ocidental de governo”.

Talvez mais significativo ainda seja o caso da Índia, país que, com toda a sua heterogeneidade cultural, assimilou e adaptou o constitucionalismo britânico.

No polo oposto ao do multicultural-identitarismo, o pensador indiano Amartya Sen vai bem além disso. No livro “Identidade e Violência”, critica a insistência em compartimentar os povos do mundo em “boxes of civilizations”.

É a grande ilusão da singularidade, diz. Povos e culturas têm suas especificidades, claro, mas não irredutibilidades fechadas em configurações definitivas, uniformes e segregadas.

A visão que pretende fixar separatrizes insuperáveis entre civilizações não só dá as costas à história e passa ao largo da diversidade interna de cada complexo civilizacional, como fecha os olhos às múltiplas interrelações existentes entre civilizações distintas entre si.

Com essa obsessão multiculturalista por separar drasticamente as coisas, obscurecemos a história, falsificamos a realidade e cometemos erros primários.

Amartya Sen argumenta exatamente com relação à democracia, que muitos teimam em definir como “uma ideia quintessencialmente ocidental e estranha ao mundo extraocidental”.

Parte-se, aqui, da falsa crença de que a tolerância e a liberdade são características próprias e intransferíveis do Ocidente. Em resposta, Sen observa que o pensamento de Platão e o de Tomás de Aquino não era em nada menos autoritário do que o de Confúcio.

E lembra que, na mesma época em que hereges eram atirados nas fogueiras da Inquisição, o imperador indiano Akbar, o Grande Mughal, pregava a tolerância religiosa, assentando que toda pessoa tinha o direito de seguir a religião que quisesse.

Nessa batida, Sen acaba falando de raízes planetárias da democracia. Muito antes de ter qualquer impacto entre antigos povos nórdicos —ou no que é hoje a Inglaterra, a França ou a Alemanha—, a experiência democrática pioneira da Grécia repercutiu em cidades asiáticas de sua época.

Mais: a tradição de governar através do diálogo e da discussão pública é coisa encontrável historicamente em diversas partes do mundo.

No caso do Japão, cita-se a regência do príncipe budista Shotoku, promulgando uma constituição no século 7º, como primeiro passo num caminho gradual para a democracia. Sen se refere ainda à ampla tolerância vigente na Península Ibérica sob domínio muçulmano, de que foi exemplo maior o Califado de Córdoba sob Abd al-Rahman 3º.

O mundo ocidental não detém o monopólio da ideia democrática, finaliza o pensador: ao passo que as modernas formas institucionais da democracia são relativamente recentes em todos os lugares, a história da democracia, sob a forma de participação e discussão públicas, encontra-se disseminada no mundo.

Mas retomemos o fio da meada, voltando à China. O identitarismo poderá se derreter diante do brilho planetário do sol amarelo dos chineses. Caminhamos para uma horizontalização da ordem mundial, com a China no mesmo nível do Ocidente, em matéria de poder e riqueza.

O multicultural-identitarismo vai cair em si enquanto fantasia ideológica essencialmente ocidental. Vai-se ver sem o macho branco como bode expiatório do mundo. Terá à sua frente o macho amarelo, que não deve nada ao macho preto. E com uma história milenar de opressões, que o identitarismo não julga, pois nasceu exclusivamente para alvejar o “mundo branco”.

Mas vamos finalizar. As ameaças mais reais e imediatas à nossa democracia não vêm da China. Resultam do populismo autoritário de direita (a que mais de perto e perigosamente nos tensiona agora, com o ex-capitão boçal reunindo milicos, milícias e evangélicos para o golpe que não se cansa de anunciar) e do populismo autoritário de esquerda, que traz agora como novidade o projeto igualmente autoritário de uma “democracia diversitária”. No Brasil, aliás, são os próprios partidos políticos, na disputa pelo poder, que paralisam a democracia.

E aqui teremos de nos dispor, inclusive, a uma conversa muito pouco usual, embora já frequente nas reflexões de alguns pensadores e analistas políticos. Trata-se de elucidar o que talvez seja mesmo o perigo maior: a radicalização extremista da democracia pode levar à sua destruição. Tocqueville já pensava nisso. Temos de acender a luz sobre o potencial autodestrutivo da democracia.

Acho curioso que pessoas se espantem com isso: se falamos do potencial autodestrutivo da humanidade, de que as armas nucleares são os produtos mais evidentes, por que não falar de uma coisa bem menos grave, que é o potencial autodestrutivo da democracia?

De uma parte, o receio em relação a esse ponto vem do fato de que podemos tomar o rumo de uma fragilização inédita das instituições sociais, como já vemos nos casos do sistema educacional e da negação absolutamente prematura da nação.

De outra, decorre da percepção de que a obsessão estatística do multicultural-identitarismo não deixa de descender, perversamente, do sonho igualitarista da Revolução Francesa. Quer levar o ideal do século 18 à perfeição, mas por um caminho que julgo totalmente equivocado, o do representacionismo estatístico.

Seja como for, o dado real, na conjuntura que estamos atravessando, é que o Estado identitário começa a se desenhar, diante de nossos olhos, como uma subvariante ou variante nova da organização estatal corporativa herdada do fascismo italiano.

Bem vistas as coisas, depois da maré do “politicamente correto”, o representacionismo diversitário quer implantar, no campo da política, uma espécie de representacionismo estatístico. Uma ditadura censitária —ou a ditadura do demograficamente correto.

Tudo na base da cota. Na verdade, só não se fala de cota a propósito da seleção brasileira de futebol, pois nesse caso o objetivo é ganhar o jogo. Não há lugar para comemorações negativas, nem para institucionalizações da compaixão.


* * * * * * *

Artigo publicado em 

https://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2021/10/ideologia-identitaria-agride-base-da-democracia-liberal-diz-antonio-riserio.shtml

Ilustração: Valor Econômico 

quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Nietsche, Socialismo, Capitalismo e Burguesia

 






NIETZSCHE, como bom "transvalorizador de todos os valores" criticou a política como “lamentável palavrório feito de política e egoísmo dos povos”.

Nietzsche não acredita no Estado, na política ou na democracia. Seu ideal é o homem superar a si mesmo. "Além-Homem".

Sobre o socialismo ele disse:
“Existem alguns que pregam minha doutrina de vida, mas ao mesmo tempo pregam igualdade. Não desejo ser confundido com esses pregadores de igualdade, pois dentro de mim a justiça diz: os homens não não iguais; nosso desejo é possuir nada em comum. Vós ó pregadores de igualdade, a tirania insana da impotência clama assim de vosso interior por igualdade. A natureza odeia a igualdade, ela ama a diferenciação dos indivíduos, das classes e das espécies. O socialismo é antibiológico; o processo da evolução implica na utilização da espécie, classe, raça ou indivíduo inferior pelo que lhe é superior. A vida é exploração e subsiste de outra vida; os peixes grandes comem os pequenos e essa é a história toda. O socialismo é inveja: eles desejam algo que outros têm"
E ainda,
"O socialismo é o fantasioso irmão mais jovem do quase decrépito despotismo, do qual quer herdar; suas aspirações são, portanto, no sentido mais profundo, reacionárias. Pois ele deseja uma plenitude de poder estatal como só a teve alguma vez o despotismo, e até mesmo supera todo o passado por aspirar ao aniquilamento formal do indivíduo...por isso prepara-se na surdina para dominar pelo pavor e inculca nas massas semicultas a palavra "justiça" como um prego na cabeça para despojá-las totalmente de seu entendimento.."
Sobre o capitalismo e a burguesia do seu tempo (tanto para os donos do capital quanto para a vida do burguês sem capital, do trabalho metódico e conservador) disse,
“De qualquer forma, o escravo é mais nobre do que seus senhores modernos — a burguesia. É um sinal de inferioridade da cultura do século dezenove o fato de que o homem de dinheiro seja objeto de veneração e inveja. Mas esses homens de negócios também são escravos; marionetes da rotina, vítimas dos negócios, não têm tempo para ideias novas; pensar é tabu entre eles, e as alegrias intelectuais estão fora de seu alcance. Daí sua inquietação e eterna busca pela “felicidade...”
e,
“Observem a loucura atual das nações que desejam produzir o mais possível e ser tão ricas quanto possível. No fim o homem torna-se um animal de rapina: atacam-se de emboscada; obtêm coisas uns dos outros colocando-se de espreita. Chamam isso de boa vizinhança. Atualmente a moralidade comercial não é senão um refinamento da moralidade pirata — comprar no mercado mais barato e vender no mais caro. E todos esses homens clamam pelo Laissez-faire, mas são exatamente esses homens que mais deveriam ser supervisionados e controlados. Talvez até mesmo um certo socialismo, por perigoso que seja, fosse justificado aqui"
Perguntei ao Nietzsche se ele escolheria Lula ou Bolsonaro e ele me disse com todas as letras: "Nem um, nem outro". (é, eu sei, a postagem podia ficar sem essa piada infame, mas perdoem-me, eu sou meio infame)
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Referências:
DURANT, Will. A Filosofia de Nietzsche. Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1963
NIETSCHE, Friedrich, Humano, Demasiado Humano. Coleção Os Pensadores

domingo, 29 de agosto de 2021

 




Partidos temem Bolsonaro mais autoritário após 7 de Setembro, e aliados tentam moderar discurso

Receio de líderes políticos é que eventuais ruas cheias acabem legitimando declarações golpistas
Entre auxiliares no Palácio do Planalto, há o temor de que o discurso do presidente, normalmente feito de improviso, seja inflamado diante das ruas cheias. (Folha SP, 29/08/2021)
* * *

A turba ensandecida pode precipitar em muito a situação e derramar o caldo que talvez nem o presidente queira mesmo derramar, já que não o vejo com todas as bases para se manter em uma quebra de normalidade democrática. Nem todos generais são inconsequentes. Por outro lado, talvez o presidente tenha medo do efeito sincero Trump, que declarou a seus apoiadores que tinha sido vacinado e foi fragorosamente vaiado.


quinta-feira, 1 de julho de 2021

Diário de bordo de uma ativista




Por Flávia Fróes*

(Facebook, em 30/06/2021)


Manhã fria na capital do sangue quente. 


Apressada, embarco no carro do aplicativo de transporte. O motorista segue rumo ao aeroporto comentando a notícia da rádio de que a Itália hoje decretou o fim da obrigatoriedade do uso de máscaras em razão do controle da pandemia da Covid-19. Dizia ele que por aqui ainda amarguraremos muitas mortes em razão da péssima administração federal no controle epidemiológico. Conto a ele a razão da minha viagem : a assinatura da unificação de todos os pedidos de impeachment contra Bolsonaro. Com um suspiro ele deseja sorte na empreitada. 


Me despeço feliz e sigo refletindo sobre o mesmo desejo de bom ânimo que recebi na véspera das vendedoras da loja de sapatos e de roupas onde estive à noite e comentei sobre a missão de hoje. Por toda parte cresce a esperança em tempos melhores, com o necessário e urgente afastamento do genocida que preside o Brasil. 


Com o escândalo do vacinoduto e a triste marca de mais de meio milhão de mortos, a certeza de que não podemos esperar 2022, é preciso arrancar do poder o fascínora  que nos conduziu ao atual cenário de caos.


Como ativistas, à frente do Instituto Anjos da Liberdade, fomos artífices de denúncias ao Tribunal Penal Internacional, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ao Congresso Americano, pedidos de impeachment contra Bolsonaro, contra Paulo Guedes, pleitos ao Supremo Tribunal Federal contra o então ministro Sergio Moro, pleitos à procuradoria geral da república, ocupando sem tréguas a trincheira da necessária e intransigente resistência à barbárie instaurada. 


Hoje é com o coração transbordando de fé e júbilo que sigo rumo à capital federal para ocupar fileiras com outros companheiros de luta na trincheira para apear do poder Jair Bolsonaro, um fascista que a história cobrará por seus crimes. 


Bolsonaro acabou!


OBS: Flávia Pinheiro Fróes é advogada e presidente da ONG Instituto Anjos da Liberdade

segunda-feira, 7 de junho de 2021

Dilemas: CPI da Covid, Renan e Randolfe

 O DILEMA (proposto por mim) DE RENAN


CENA 1. A POLÍCIA FEDERAL realizou em 28 de maio deste ano, operação para investigar desvios de recursos públicos que eram para serem usados no combate à pandemia em SERGIPE E ALAGOAS. 

Os crimes investigados teriam acontecido em 2020, causando um prejuízo de R$ 1.071.221,90 ao Fundo Nacional de Saúde.

CENA 2, O MPF-AL (Ministério Público Federal de Alagoas) está apurando os gastos do governo de Renan Filho (MDB) no combate à pandemia de covid-19. O procedimento administrativo de acompanhamento de políticas pública foi instaurado em junho de 2020 e encaminhado ao Senado na última semana.

CENA 3. Após operação policial em Manaus, CPI decide antecipar depoimento de governador do Amazonas. O presidente da CPI, senador Omar Aziz (PSD) é de Manaus. 


PERGUNTA E DILEMA. Ranan Pai estaria disposto a apoiar pelo menos um convite ao seu filho, Renan Filho, para depor na CPI?

P.S. eu acho que não, melhor culpar só o presidente que tá de bom tamanho. 

P.S2. é uma pena que o presidente não possa ser convocado para a CPI, imagina a cena....!

* * * * 

O DILEMA (por mim proposto) DE RANDOLFE


CENA 1 - Em julho do ano passado, o senador Radolfe Rodriguez, vice-presidente da CPI da Covid, fez uma live com três profissionais da saúde do seu estado, o Amapá, onde ele tece rasgados elogios aos profissionais, pelo esforço que eles estavam fazendo para "salvar vidas". 

Os profissionais usavam o "tratamento precoce" contra a Covid: cloroquina e ivermectina e também suplementos de vitamina D. 

Radolfe diz na live que o protocolo precoce estava "salvando vidas", isso no mês de julho, época em que as autoridades científicas negavam a eficácia de tais medicamentos. 

CENA 2 - Hoje, convencido da ineficácia do tratamento precoce, o senador Randolfe critica quem o defende. Mas na citada live, ele diz textualmente que o protocolo estava "salvando vidas". 

UMA PERGUNTA - afinal de contas, o tratamento precoce salvou ou não salvou vidas no seu estado, excelentíssimo senador?


P.S. o senador deletou a live. Mas sempre tem quem faz aquele print.

P.S 2 - Reportagens da Rede Amazônica, afiliada da TV Globo no Amapá, publicadas no portal de notícias G1 em 5 de janeiro e 9 de abril de 2021, noticiam o uso de protocolos que preveem uso de medicamentos sem eficácia comprovada pelo Comitê Médico de Enfrentamento à Covid-19 do Estado do Amapá. (informação do Estadão) 

P.S 3 - A eficácia ou ineficácia da ivermectina em pacientes de covid-19 AINDA NÃO ESTÁ DEMOSTRADA.  De acordo com a atualização mais recente da OMS, os estudos disponíveis atualmente são inconclusivos e o tratamento com a droga deve se restringir apenas a pesquisas clínicas. O mesmo posicionamento é adotado pela EMA, enquanto o Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos (NIH) aponta que ainda não existe base suficiente para recomendar contra ou a favor do medicamento.(Informação do Estadão)

P.S 4. Quando na CPI um senador sulista alfineta Randolfe e diz que no Amapá ainda se usa o tratamento precoce e que ele mesmo o defendeu ano passado, Randolfe esbraveja; "Mentira!!" 

P.S 4 - Eu, Eduardo Medeiros, sou um entusiasta da CIÊNCIA. Crendices e apostas no escuro, levam a mal caminho.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

EXÍLIO FORÇADO

 




Albert Camus publicou A peste, em 1947, oferecendo à posteridade uma metáfora absolutamente instigante da condição humana. Seu livro, como alegoria, está carregado de verdades cuja raiz mais profunda é o desafio da vida humana no planeta e, ainda mais, o desafio de fazer do planeta uma casa para o ser humano. A peste é, nesse caso, uma ameaça e um exílio. Esse pode ser considerado o eixo central da obra, cujos relatos de mortes e medos remetem ao exílio existencial, metafísico e social. Trata-se daquele estranhamento vivido por Meursault no seu livro anterior, O estrangeiro:

“Ah, o senhor não é daqui?”

O exílio é a perda do mundo, o deslocamento, o desenraizamento, a falta de referências, a crise de fundamentos e suas consequências práticas: a falta de expectativa, a ruína da esperança, o colapso do interesse, a ausência de pertencimento.

Não é por acaso que o móvel dessa perda de raiz é uma peste: uma doença contagiosa anula aquilo que nos qualifica como seres humanos, a vida em comum. Sem isso, perdemos as condições básicas de nossa própria sobrevivência como animais políticos (Aristóteles) e como seres gregários (Nietzsche). Isolamento, distanciamento, retiro, asilo e quarentena são palavras antigas para expressar a crise da sociabilidade, cujo sentido mais profundo é expresso pela cidade de Orã fechada sobre si mesma: proibido de ir e vir, o ser humano perde a relação, o encontro, a alteridade.

Abalo das estruturas 

Exílio, em Camus, é sobretudo separação: “uma das consequências mais importantes do fechamento das portas foi a subida separação em que foram colocados seres que não estavam preparados para isso”.  Não é por acaso que o próprio Camus aproxima o exílio de um “desejo de reunião” que é também uma “sede jamais satisfeita” . O exílio é a amputação do outro, da habitação comum e de si mesmo e, com isso, ele se articula com o tema da revolta, para expressar a dissociação entre os desejos do homem e as oportunidades do mundo.

Com a peste, todos ficaram “irremediavelmente afastados, impedidos de se encontrarem ou de se comunicarem”e é essa separação que deixava a todos tão perturbados: os meses de exílio são, sobretudo, “meses de vida perdidos para o amor”. O exílio se traduz, assim, como a crise do afeto, que é a pior das distâncias. 

A obra de Camus ocupa essa fenda e, com ela, o autor põe o pé no terreno movediço e instável que marca a pós-modernidade, caracterizada pela imagem do deserto crescente: “o deserto cresce, ai daquele que oculta desertos…”, escreve Nietzsche na quarta parte de Assim Falou Zaratustra . O deserto é o não lugar, o esvaziamento, a desabitação, a terra incógnita e arrasada sobre a qual caminham os que se encontram perdidos. Uma condição que traduz o conceito nietzschiano de niilismo: o abalo das estruturas (instituições, afetos e orientações) da modernidade.

Indiferença

O exílio, não por acaso, dá expressão ao estranhamento, ao nomadismo e à crise de referências contidas em outra metáfora nietzschiana espantosa: a morte de Deus. O deicídio é o ato mais selvagem e mais inquietante de nosso tempo. Selvagem, porque ele retira a civilização dos eixos tradicionais; inquietante, porque não coloca nada no seu lugar. Sem Deus, estamos desabrigados, abandonados, deixados à deriva, precisamente nós que, durante as últimas eras, acreditávamos ocupar o centro das coisas.

O resultado seria a falta de horizontes e metas, a crise das crenças e a falência da moralidade, cujo último produto é a solidão humana, a angústia e o desespero. Hans Jonas descreveu esse sentimento como uma espécie de neognosticismo que o existencialismo de Heidegger, Sartre e Camus teria mantido, mesmo sem saber. Se o gnosticismo antigo era a expressão de uma revolta contra a physis, o neognosticismo existencialista manifesta a indiferença em relação ao mundo – algo que se revela plenamente no narrador de O estrangeiro:

perguntado sobre suas vontades, ele não se demora a responder que “tanto fazia”. Essa mesma indiferença aparece em Melville, cujo escrivão, Bartleby, costumava declarar, diante do mesmo tipo de interrogação: “preferiria não,”dando azo à indiferença, que é o produto maduro do estranhamento e da insatisfação. Indiferente e frustrado, o ser humano encontra-se descomprometido e age sem responsabilidade. Não por acaso, Edward Said chamou a nossa de a “era do refugiado”, que é também a era da indiferença, a era da frustração e do cansaço.

Exílio

O exílio torna-se, assim, não só uma imagem para o antilugar, mas também para a antitemporalidade: o desinteresse provoca a anulação do futuro, traduzida pela apatia generalizada em relação ao porvir. Sua expressão é a morte, tratada como o exílio final, a separação radical entre o homem e o mundo. Não é outro o tema d’A peste, cujas mortes seguem o curso da doença com o drama de quem sai do mundo sem que ele nunca tenha sido seu. A peste é a experiência do exílio porque ela é, sobretudo, a  experiência da morte vã arrematando uma vida irrelevante.

O exílio descrito por Camus é o da separação, tanto quanto o nosso hoje. Também agora, como antes, sofremos a perda de um mundo comum cotidiano que era nosso e que nos foi retirado de repente pela peste, sem garantias de que venha a existir novamente. Trancados em casa, todos os que tomamos consciência dos fatos, estamos sem chão e também, como no livro, distante dos nossos amores. Tempo de “clausura e abatimento” vivido pelos doentes em “quartos separados do mundo”, em hospitais, UTIs, quarentenas e isolamento.

Exilados, muitos de nós vivemos em estado de desilusão, doença e solidão, impostas pelo flagelo, enquanto esperamos pela hora da (re)união. Por isso, o livro de Camus é uma espécie de descrição profética não de uma, mas de todas as pestes, incluindo a pandemia que nos afeta hoje, quando enterramos mortos sem adeus e tememos o outro, cujo hálito pode propagar o vírus fatal.

Grito paranoico

As semelhanças entre o relato de Camus e a nossa realidade não são mero acaso: elas traduzem o ritual de todas as pestes. Quando a pequena Orã começa a contar seus ratos mortos, ninguém entende e ninguém acredita que aquilo era sinal de algo mais grave. Como hoje, os números seguidos de mortos, contados às centenas, não mereciam a atenção necessária, porque números não tinham rostos. Ninguém sabia ao certo a gravidade das coisas, porque a ciência não tinha crédito, as autoridades estavam confusas e a mídia, abstrusa.

As medidas sanitárias de controle, o fechamento das fronteiras, a proibição de aglomerações, o fechamento de comércio… Decisões eram tomadas enquanto uma parcela da população ignorava os riscos e minimizava os perigos. No livro, como em nossos dias, interesses de cunho íntimo tiveram prioridade em relação às necessárias ações coletivas. Não seria estranho se, na forma de um intertexto, Camus acrescentasse em alguma de suas páginas o grito paranoico da moça brasileira:

“me entuba p…!”.

Como hoje, a peste de Orã fechou estradas, fronteiras, comunicações. As ruas ficaram desertas e a morte ocupou todos os lugares. Como agora, houve quem se opusesse às medidas, contestasse os dados e desconfiasse da gravidade da peste, de seus prejuízos e sofrimentos. Como os profissionais da saúde de agora, Dr. Rieux, o médico narrador, somava suas dores às de todos os doentes que lotavam os hospitais, enquanto a jornada estafante transformava a profissão em um ato de resistência e heroísmo, quase sempre anônimo e sem plateia.

Previsíveis homens

E não faltaram, como hoje, os moralistas de plantão a bradar que a peste era um castigo dos deuses contra os inimigos da fé e para a exaltação dos justos. Também lá, no livro, esses moralistas morreram do vírus que diziam não existir, sem o Deus que eles juravam suficiente diante da calamidade e sem a medicina que poderia adequadamente tratá-los. Tudo isso mostra o quão previsíveis são os homens em meio às tragédias.


“ O EXÍLIO DESCRITO POR CAMUS É O DA

SEPARAÇÃO , TANTO QU ANTO O NOSSO HO JE .

T AMBÉM AGORA , COMO ANTES , SOFREMOS

A PERDA DE UM MUNDO COMUM COTIDIANO

QUE ERA NOSSO E QUE NOS FOI RETIRADO

DE REPENTE PEL A PES TE , SEM GARANTIAS

DE QUE VENHA A EXIS TIR NOVAMENTE ”

E, como hoje, houve falta de remédios em Orã, além de variações epidêmicas, ignorância, desinformação e desconhecimento; houve estado de exceção, punições e, sobretudo, enterros apressados, corpos em valas comuns, cemitérios lotados, falta de leito em hospitais, desordem econômica e desemprego, obviamente. Também lá a peste afetara desigualmente pobres e ricos, com enorme prejuízo dos primeiros, embora faltassem ingredientes que fazem, hoje, a realidade superar a ficção.

O exílio, como separação e perda de mundo, é o sentimento comum a todos que tomam consciência da gravidade dos fatos: “a primeira coisa que a peste trouxe aos nossos concidadãos foi o exílio”, e a primeira coisa que ela nos tira é o contato com os outros. Sem poder sair da cidade ou encontrar quem se ama, cada cidadão de Orã se sentia um apátrida, sem lar, sem lugar no mundo, um prisioneiro “numa cidade fechada sobre si mesma” de quem se tirou os afazeres habituais e as expressões cotidianas da vida que se dá no encontro com o outro em sociedade. Sem o outro, ficamos sem a experiência central da vida, que qualifica quem somos.

Cenas do reencontro

Estas, descritas por Camus, ao final de seu livro, bem explicam este sentimento: “todos voltaram então para casa, alheios ao resto do mundo”, como “turistas da paixão (…) formavam ilhotas de sussurros e confidências” e “anunciavam a verdadeira libertação” que era estar na presença de quem se amava.

Esses braços que se entrelaçavam diziam

bem que ela tinha sido exílio e separação,

no seu sentido mais profundo”

Para Camus, o custo impagável do exílio é a impossibilidade do amor, sentimento reunificador e tônico primeiro da vida: se “todos tinham sofrido juntos, tanto na carne quanto na alma, um vazio difícil, um exílio sem remédio e uma sede jamais satisfeita”, o reencontro é descrito como a efusão alegre de quem encontra novamente uma “verdadeira pátria” que está, entre outras coisas, “no peso do amor”.

Por isso, Camus conclui que “as únicas certezas que eles [os homens] têm em comum são o amor, o sofrimento e o exílio”, algo que é partilhado por todos os seres humanos. Agora, como ontem, precisamos descobrir o que fazer com essa tríade. Como em Orã, oxalá possamos revalorizar as relações, reocupar os espaços públicos e saudar o amor e a amizade como fermentos da vida boa.


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Artigo publicado na revista Humanitas 143

Autor: 

JELSON OLIVEIRA é professor do Programa de Pós--Graduação em Filosofi a da PUCPR, autor de inúmeros artigos e livros, entre os quais estão Negação e poder: do desafi o do niilismo ao perigo da tecnologia (EDUCS, 2018) e Terra Nenhuma: ecopornografi a e responsabilidade (EDUCS, 2020). ✉ jelson.oliveira2012@gmail.com

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um dos mais importantes e representativos autores do século XX e ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, A peste que destaca a mudança na vida da cidade de Orã, na Argélia, depois que ela é atingida por uma terrível peste, transmitida por ratos, que dizima a população. É inegável a dimensão política deste livro, um dos mais lidos do pós-guerra, uma vez que a cidade assolada pela epidemia lembra a ocupação nazista na França durante a Segunda Guerra Mundial. A peste é uma obra de resistência em todos os sentidos da palavra. Narrado do ponto de vista de um médico envolvido nos esforços para conter a doença, o texto de Albert Camus ressalta a solidariedade, a solidão, a morte e outros temas fundamentais para a compreensão dos dilemas do homem moderno.

domingo, 7 de fevereiro de 2021

TodEs a PostEs!

 





"Tenho dúvidas da relação entre as palavras de gênero neutro e a igualdade"


 

Em “Não Perca o Seu Latim”, Paulo Rónai conta a história do imperador Sigismundo, que no Concílio de Constança se enganou no gênero de uma palavra e ordenou que, dali em diante, a palavra passasse a ter aquele novo gênero.

Um monge considerou a ideia absurda e contestou, celebremente: “Caesar non supra grammaticos”, que significa “o imperador não está acima dos gramáticos”, ou seja, não manda na gramática.

Em princípio, o monge tem razão: ninguém manda na gramática, nem mesmo um imperador. No entanto, o Liceu Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro, resolveu tentar, e dirigiu-se aos estudantes com a saudação “querides alunes”, por “respeito à diversidade e à inclusão”.

Eu sou daquelas pessoas que acreditam ser possível respeitar a diversidade e a inclusão em português. Ao que parece, é uma crença absurda e reacionária: a língua portuguesa só deixa de discriminar se as palavras acabarem em “e”. Com exceção da palavra presidente, que já acaba em “e”, mas só deixa de oprimir se passar a ser presidenta. Que azar.

A transformação do nosso idioma numa língua neutra coloca vários problemas, e o menor deles talvez seja o ridículo. Mesmo forçando à neutralidade adjetivos e substantivos, como “querides” e “alunes”, ainda assim sobra a questão dos artigos, dos particípios passados, dos numerais, etc.

A frase, aliás bem bonita,Es arquitetes foram agredides por bandides e tiveram de ser operades por médiques”, talvez cumpra parte destas novas aspirações linguísticas, mas na eventualidade de “es bandides” serem um par, e de querermos designá-los através da antiga e profundamente discriminatória formulação “dois bandidos”, teríamos de inventar também um numeral neutro, para acrescentar ao masculino “dois” e ao feminino “duas”. Deis, talvez? Eram deis bandides. Satisfeites?

A verdade é que tenho muitas dúvidas de que haja uma relação direta entre o gênero neutro das palavras e a igualdade. Parece-me que as desigualdades têm causas mais profundas. Por exemplo, na língua persa, falada no Irã, Afeganistão e Tajiquistão, todas as palavras são de gênero neutro. Se calhar, conheço mal as sociedades iraniana, afegã e tadjique, mas assim de longe não me parecem muito igualitárias, diversas e inclusivas.

 

Ricardo Araújo Pereira

Humorista, membro do coletivo português Gato Fedorento

sábado, 23 de janeiro de 2021

Qual será o avanço ético da humanidade neste século XXI?

 



Em meus quase 45 anos de idade, ainda não tive o mesmo tempo de vida nestas duas décadas do século atual do que as 23 últimas translações solares do milênio anterior. Porém, todos os que passamos de 2000, ainda com uma idade suficiente para saber ler e escrever, já podemos nos considerar testemunhas oculares de uma história pouco produtiva.


A meu ver, a humanidade teve consideráveis avanços éticos durante a segunda metade do século XX, após o fim da 2ª Guerra Mundial de modo que os anos 90 foram o resultado das inúmeras iniciativas que tentaram incansavelmente promover a paz entre as nações, os direitos humanos, a proteção do meio ambiente e uma adequação das políticas de bem estar social às necessidades do mercado pela liberalização da economia. 


Apesar de termos iniciado aquela década com o Kwait invadido pelas tropas do ditador iraquiano Saddam Hussein (1937-2006), tal fato pode ser considerado atípico assim como foi o conflito em Kosovo. Pois não seria exagero afirmar que vivemos uma promissora era de paz com a extinção URSS e o fim da "cortina de ferro" nos países da Europa do Leste, abrangendo-se aí a emblemática queda do muro de Berlim, de modo que a humanidade conseguiu por fim à chamada "guerra fria". Sem falar que, nos anos 90, deixamos de ouvir notícias como a guerra entre Irã e Iraque ou os problemas que envolveram o Líbano de 1975 até 1990, a respeito dos quais muito escutei durante o tempo de minha infância quando ouvia a voz do Cid Moreira iniciando o Jornal Nacional da TV GLOBO. Inclusive, recordo da tentativa pacificadora de Bill Clinton quando, em 1993, na Casa Banca, conseguiu o histórico aperto de mãos entre o primeiro-ministro israelense, Yitzhak Rabin (1922 - 1995), e o representante da Organização para a Libertação da Palestina (OLP), Yasser Arafat (1929 - 2004).



Todavia, o primeiro ano deste século foi marcado por um terrível atentado terrorista em Nova York que destruiu as duas torres gêmeas, servindo, em 2003, para justificar uma estúpida invasão militar no Iraque, sem que houvesse provas das alegadas ligações entre Saddam Hussein e os perigosos fundamentalistas da Al-Qaeda. Sem contar que os conflitos entre israelitas e palestinos continuaram, sendo que a chamada "primavera árabe", marcada pelas manifestações pró-democracia em vários países muçulmanos, acabou virando um verdadeiro "inverno" sem fim, ressaltando-se que os problemas na Síria poderão completar dez anos agora em meados de março


Também na questão ambiental o mundo não conseguiu se entender até agora, tendo muitos dos governantes praticamente rasgado o Protocolo de Kyoto que fora assinado em 1997 e que já se encontra expirado. Pois, lamentavelmente, os níveis de emissão de CO² na atmosfera continuam elevados colocando o planeta em risco, devendo ser lembrado aqui que políticos como Trump e Bolsonaro só contribuíram para que o retrocesso aumentasse.


Por certo que presenciamos avanços tecnológicos em nosso cotidiano e a internet veio definitivamente fazer parte da vida da gente. Algo que, até o final dos anos 90, ainda poderia ser um consumo dispensável para as pessoas físicas, hoje virou um serviço essencial para a maioria das pessoas, tornando-se um novo meio de escravidão do trabalhador e de distanciamento nas relações sociais.


No entanto, o final da segunda década do século XXI foi marcado pela pandemia por COVID-19 e iniciamos 2021 com um enorme desafio que é combater essa doença. 


Quantos parentes, amigos e conhecidos não perdemos precocemente com o coronavírus nem nem ao menos poder lhes dar o último abraço? Assim, o distanciamento social, antes espontaneamente procurado, quando passávamos horas lives de lazer "navegando" na internet, tornou-se então imposto por razões sanitárias. E, mesmo com a chegada da vacina, a princípio não iremos retornar ao que consideramos como "normalidade". Aliás, o mundo nunca mais será o mesmo.



Acredito que a pandemia poderá nos oferecer algum auxílio para que recuperemos a nossa capacidade de "abraçar". Porém, tudo vai depender da postura que teremos através das ações que serão tomadas. Pois tanto poderemos nos tornar pessoas mais frias e indiferentes à dor do próximo como também recuperarmos a humanidade há tempos pedida, inaugurando um mundo de solidariedade com mais cooperação.


Ótima semana a todos! 


OBS: Créditos autorais da primeira foto, sobre o aperto de mãos entre Yitzhak Rabin e Yasser Arafat, atribuídos a Ron Edmunds, 10/09/1993/AP. Já a última imagem da vacinação contra o coronavírus na estátua do Cristo Redentor, no Rio de Janeiro, em 18 de janeiro de 2021, os créditos autorais são de Ricardo Moraes/Reutets.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Sorria, sua privacidade acabou!

 



MUITO se discute hoje o papel das empresas de tecnologia que acabaram com nossa privacidade. Livros estão sendo escritos, como "Dez Argumentos Para Você Deletar Agora Suas Redes Sociais" , de Jaron Lanier, considerado o pai da realidade virtual. Lanier não possui redes sociais e explica porquê: "Evito as redes sociais pela mesma razão que evito as drogas". Somos hoje regidos pelos "algorítimos"; eles nos controlam e modificam nossos comportamentos sem nem mesmo percebermos. 

No  recente lançamento, "Privacidade é Poder",  Carissa Véliz discute  ética do mundo digital. Abaixo, reproduzo partes da matéria do jornal A Folha de São Paulo que entrevistou a autora. 

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“Se os carteiros lessem nossas cartas da maneira que o Gmail faz, iriam para a cadeia”, escreve.


O poder econômico das big techs é facilmente conversível em poder político, e a ascensão e queda de Donald Trump está aí de exemplo.

Essa simbiose deve muito ao 11 de Setembro. Sem os atentados, talvez a história tivesse seguido curso diferente.

“A extensão da vigilância governamental depois do 11/9 é espantosa. A NSA [agência do governo americano] coletou dados de Microsoft, Yahoo!, Google, Facebook, YouTube, Skype, Apple, entre outras, num programa chamado Prism. Isso incluía emails, fotos, vídeos, conversas em áudio e histórico de navegação.” 

A reação a isso depende das pessoas, defende Carissa, que é professora no Instituto para Ética em Inteligência Artificial na Universidade de Oxford.

Após publicar “Privacy is Power” (Privacidade é Poder, sem previsão de lançamento no Brasil), onde também dá dicas sobre o que fazer, ela agora edita “Manual de Oxford para Ética Digital”

A sra. argumenta que privacidade é uma forma de poder. Poderia explicar? 

Podemos pensar no poder como algo análogo à energia. Pode se transformar de uma forma em outra. Por exemplo, se você tem poder econômico, isso pode ajudá-lo a conseguir poder político.

Os dados são outra forma de poder. Podem levá-lo a ganhar poder econômico (como no caso do Google) e poder político (como no caso das campanhas políticas orientadas pelos dados).

Na era digital, quem tiver dados terá poder. Se damos nossos dados a empresas de tecnologia, os ricos comandarão nossa sociedade. Se damos aos governos, corremos o risco de tendências autoritárias.

Apenas se o grosso do poder (e dos dados) estiver nas mãos dos cidadãos a democracia será forte. Sempre que você entrega dados para outros, você dá poder a eles.

A sra. escreve: “Se damos nossos dados para os governos, acabaremos com alguma forma de autoritarismo. Apenas se as pessoas guardarem seu dados a sociedade será livre”. Já perdemos nossa liberdade?

Parte dela sim. Algumas pessoas perderam mais liberdade do que as outras. Mas todos nós podemos perder muito mais. A arquitetura da vigilância que estamos construindo poderia ser o andaime de um regime autoritário quase invencível.

Quão conectados estão o governo americano e as empresas de tecnologia? Como elas auxiliam no trabalho de vigilância dos órgãos públicos? 

Muito. Algumas empresas têm laços mais próximos dos que outras. Um laço particularmente preocupante é o entre a Palantir e o governo americano. A Palantir é uma empresa que ajudou a NSA a implementar seu programa de vigilância em massa e agora está envolvida com outras agências do governo, como o Centro para Controle de Doenças, por causa da pandemia. Desde o comecinho, a vigilância na era digital tem sido um empreendimento público-privado.

Quão rapidamente a consciência sobre a privacidade está ganhando corpo pelo mundo? Há algum país à frente?

Numa pesquisa recente que fiz com uma colega, Sian Brooke, descobrimos que 92% das pessoas haviam tido alguma má experiência relacionada à privacidade online. Como resultado do acúmulo de más experiências, estamos ficamos mais conscientes sobre a importância da privacidade.

A Alemanha talvez seja um dos mais países mais conscientes sobre isso no mundo, possivelmente por causa de sua história com a Stasi (polícia secreta da antiga Alemanha Oriental).

O Facebook tem a privacidade de seus usuários como a mais baixa prioridade em sua lista, segundo a sra. argumenta. O poder público está fazendo o que é necessário em relação ao Facebook? 

Não, os reguladores ainda não estão fazendo o necessário em relação ao Facebook. Mas a empresa é alvo atualmente de várias investigações e processos mundo afora. O resultado deles pode ser importante no caminho para regular as big techs.

A sra. discute “a crença equivocada de que a privacidade era um valor ultrapassado”. Como foi construída essa crença?

Resultado de vários elementos, dois deles proeminentes. Primeiro, era uma narrativa conveniente para as companhias de tecnologia venderem de modo a justificar seu modelo de negócios. É famosa a afirmação de [Mark] Zuckerberg de que nós havíamos “evoluído” em nossas condutas de privacidade.

Segundo, o link entre perda de privacidade e dano é muito mais direto e tangível no mundo offline do que no mundo online. Então é fácil esquecer por que privacidade é tão importante, dado que grande parte das nossas vidas ocorre online.

Quando alguém furta seu diário, você percebe sua ausência e pode imediatamente pensar em como podem utilizá-lo indevidamente. Quando dados sobre você são coletados online, não há nenhum rastro. Os danos podem ser similares ou piores do que os danos da perda de privacidade no passado, mas você não vai perceber. Você pode perder um emprego por causa de discriminação injusta baseada nos seus dados, mas você jamais saberá o que aconteceu.

Muitas pessoas usam as redes sociais para se comunicar com parentes e amigos que vivem longe. Podem ver as crianças crescendo e compartilhar experiências, reforçando relações que, em outros tempos, seriam muito distantes. Não é uma recompensa pela perda de privacidade? 

Comunicar-nos online com as pessoas que amamos é muito importante para os que vivemos longe. Mas não precisamos, ou não deveríamos, ter de desistir da nossa privacidade para conseguir isso.

Podemos usar serviços criptografados como o Signal. Algo importante para ter em mente é que a compra e venda de dados pessoais faz parte de um modelo de negócios. A tecnologia em si não precisa disso para funcionar.


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Matéria original: https://www1.folha.uol.com.br/tec/2021/01/e-preciso-acabar-com-o-modelo-digital-baseado-nos-dados-pessoais-diz-professora.shtml?origin=folha

Viva São Cosme e São Damião!

Aí um texto publicado no Facebook pelo historiador e deputado Chico Alencar que confere um bom sentido às crenças religiosas e aos costume...