EDITORIAL DO JORNAL O GLOBO DE 02/11/25
São estarrecedores os métodos do Comando Vermelho (CV) para manter o controle do complexo de favelas do Alemão e da Penha. A denúncia do Ministério Público que serviu de base à megaoperação das polícias do Rio na última terça-feira é repleta de revelações sobre práticas repugnantes da facção. Mensagens interceptadas demonstram que o CV montou uma estrutura complexa de domínio, altamente hierarquizada e militarizada, levada a cabo por meio de tortura, execuções sumárias determinadas por um “tribunal” do tráfico e até um departamento para cuidar de propinas pagas a agentes da lei. Não há como nenhuma sociedade civilizada tolerar esse abominável estado de exceção.
Sessões de tortura são usadas para punir comparsas e moradores que não seguem as regras impostas pela facção. Num dos casos citados, uma mulher é mergulhada numa banheira de gelo, sob a alegação de ter brigado durante um baile funk. Noutro episódio, um homem amordaçado e algemado, sem camisa, é arrastado por um carro. Enquanto implora por perdão, um dos algozes debocha de seu sofrimento. Num terceiro, um traficante diz ter dado uma “massagem” na vítima e pergunta se ela queria morrer logo. Perversidades chegam a ser filmadas, tamanho o sentimento de impunidade.
Surpreende a organização da quadrilha. De acordo com a denúncia, havia funções como “general de guerra”, “juiz do tribunal do tráfico” e especialista em propinas pagas a policiais. Um dos bandidos, que escapou ao cerco policial, era responsável por definir estratégias de enfrentamento à polícia, incluindo monitoramento das tropas com equipamentos sofisticados. Um dos chefes da facção ficava encarregado de coordenar os “soldados” do tráfico e montar as escalas de plantão. Também administrava eventos como bailes funk. O CV mantém regras rígidas para proteger os chefes do tráfico em locais cercados de barricadas e dotados de armamento pesado, que dificultam as operações policiais e a prisão dos bandidos.
A denúncia do MP deixa clara a necessidade da operação para interromper o domínio cruel do CV. Não se pode admitir que grupos sanguinários sequestrem extensões relevantes do território e instalem nesses enclaves um Estado paralelo, onde não vigoram a Constituição e as leis que regem os demais brasileiros. Autoridades têm obrigação de reprimir essas organizações criminosas. Mas é fundamental que essas ações sejam permanentes e não fiquem restritas às incursões policiais. Precisam ser seguidas de policiamento de rotina e serviços como educação, saúde, transporte, urbanização e moradia, como mostram todas as experiências internacionais bem-sucedidas para vencer o crime organizado.
A demanda por serviços públicos nas comunidades cariocas é enorme. Quando atendida pelo poder público, a população responde com avidez. Basta lembrar que, das cerca de 600 mil vagas oferecidas nas escolas municipais, 248 mil (41%) estão localizadas em áreas vulneráveis, em geral sob o comando de facções ou milícias — e apenas 13 mil permanecem desocupadas. Proporcionalmente, a demanda nessas áreas é maior que nas demais regiões da cidade (favelas concentram 1,3 milhão de cariocas, ou 22% da população). Não há indicador mais persuasivo de que a melhor forma de combater a tirania das facções é levar ainda mais educação às áreas conflagradas, dando outra perspectiva de vida às crianças.
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