UM DIÁLOGO INUSITADO


Por Levi B. Santos

Os homens acalorados, emotivos, violentos, sensíveis estão em cena. Esse espetáculo ou peça vem sendo repetida, diariamente, no palco da vida, desde os mais remotos tempos.
O ator, como um observador contínuo das sensações dos componentes que formam a plateia, sobe ao palco já sabendo que ele não é ele quando representa. Às vezes, ele cede, e as lágrimas que escapam dos seus olhos são verdadeiras...
O ator:
Caro espectador, quero que saibas que o que irás ver e enxergar em minha apresentação, é o que estou perseguindo encontrar.

O espectador:
De onde vêm essa tua inspiração e esse teu desempenho perfeito que me fazem delirar de entusiasmo?

O ator:
Sou um estudioso dos grandes modelos humanos. Conheço bem o que faz ri e o que faz chorar. Aqui em meu templo posso até injuriar alguém sem temer a sua vingança. Aqui o espectador se vê refletido na minha experiência e, através do meu papel, se torna consciente de algum aspecto dele mesmo, do qual não tinha consciência ou não tinha sido informado antes.

O espectador:
Não te perturbam aqueles que te criticam ferinamente?

O ator:
Nada disso incomoda-me. Não sou acusado pelo que sou nem pelo que tenho, mas pelo que apresento como inerente a cada indivíduo que me assiste.

O espectador:
Quer dizer que és imune à opinião alheia?

O ator:
A única maneira de superar essa tolice é rir do absurdo de sua ingenuidade. Quando representamos não somos o que realmente somos, na verdade, nos tornamos uma caracterização da pessoa que deveríamos ser.

O espectador:
Não entendo como vives incansavelmente por meses a fio a repetir as mesmas emoções, com o mesmo calor e obtendo o mesmo sucesso?

O ator:
Vejo a plateia como vejo o mundo. Tudo que se passa nesse palco são expressões da alma de todos que me assistem. Como imitador autêntico jamais enfraqueci em minhas apresentações, pois, sinto pelas janelas da alma, que são os vossos olhos, a recepção carente de vossos corações. É preciso ter discernimento e tranqüilidade para captar a sensibilidade da platéia, e poder assim, reverberar o que ela deseja inconscientemente, para realização do seu gozo imaginário.

O espectador:
Em que diferirias dos poetas que nos enlevam com seus versos?

O ator:
Por acaso, não seriam os dramáticos poetas, espectadores assíduos do que se passa em torno deles, no mundo físico e metafísico?

O espectador:
Mas o ator envelhece, e aí, continua o mesmo?

O ator:
O ator só se torna ridículo quando as forças o abandonam completamente. Mesmo passado longos anos, o velho ator quando sobe ao palco, a primeira juventude reaparece.

O espectador:
Mas como o ator, mesmo usando infinitas máscaras, tem o poder de atrair tantos?

O ator:
Ora, a platéia vive disso. Camuflamos as partes desejadas e indesejadas de cada espectador, que ri ou chora, ao ver expostas no palco as suas próprias vísceras encobertas. No teatro ele não sente tanta necessidade de se esconder de si. O nosso talento advém do uso perfeito que fazemos de suas fraquezas e ambigüidades. Nos aplausos, o espectador está dizendo: “esse é quem sou”

O espectador:
O que você quer dizer é que o espectador ao assistir a peça, deixa ali todos os seus vícios?

O ator:
Ali no palco e na platéia todos são iguais, o santo e o pecador, o bom pai e mau pai, o amigo e o desonesto. Lá dentro, cada um é imparcial, pois todos se encontram cansados dos seus ofícios. Às vezes, acontece que naquilo que parece ser falso surge o verdadeiro. Entretanto, quando tudo está corrompido, é que o espetáculo se torna mais depurado e agradável.

O espectador:
É estranho!. Saímos de nossos lares, compramos ingressos, enfrentamos filas, para entre quatro paredes rirmos e chorarmos do nosso lado sombrio, reprimido e repudiado por nós mesmos. É lá que retiramos o lacre desse lado de nossa psique, que no dia a dia julgamos excessivamente doloroso e desagradável de aceitar?!

O ator:
Em atenção ao que disseste, eu tiro minha máscara, e em tua homenagem declaro: “adquiriste o requisito principal para ser um bom ator”. Creio que compreendeste que temos de olhar para dentro de nós, a fim de examinarmos os fundamentos de nossa vida, e reconhecermos a nossa SOMBRA, para, enfim, poder conviver com ela, sem culpar ninguém, nem mesmo Deus.
Se quiseres te enfronhar nessa arte, levas contigo esse conselho: “Correrás grande perigo, se te identificares demais com o teu papel”.

CAI O PANO...
Guarabira, 12 de dezembro de 2010

Comentários

Levi B. Santos disse…
OBS.:

Esse diálogo pode acontecer ou ser experimentado num ”reino que está dentro da gente”.

O leitor, no desenrolar do diálogo, tanto pode se sentir o “ator”, como pode se ver no “espectador”.

Na verdade, isto não é um diálogo e sim um monólogo (rsrsrs)
Eduardo Medeiros disse…
o ator ganha a vida fazendo aquilo que todo mundo faz normalmente, ou seja, representando papéis.

não é a toa que na antiga grécia, berço da arte de representar, o ator era chamado de hipócrita, termo que veio a significar hoje em dia, aquele que diz uma coisa e faz outra, tipo aliás, muito denunciado por jesus.

mas se as máscaras fazem parte da nossa extrutura, poderíamos então viver sem elas? se fosse possível nos livrar-mos de todas as nossas máscaras, o que sobraria? podemos ser autênticos? desmascarados?


"Quando representamos não somos o que realmente somos, na verdade, nos tornamos uma caracterização da pessoa que deveríamos ser."

e o que deveríamos ser nunca poderemos sê-lo a não ser se for através da representação?

levi, explêndido texto que nos dará oportunidade de levantar questões essênciais para a vida, para a busca de uma vida mais autêntica.
Levi B. Santos disse…
EDUARDO


A verdadeiro ator é aquele que na sua arte de representar, leva-nos a superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida ligado às barreiras que separam cada ego dos demais.

O meu lado sombrio que tinha fugido do ângulo de minha visão é convidado a se expressar na figura receptiva do homem que está lá no palco. Nesse caso ele é meu duplo.

Comumente, não sei como expressar uma parte do meu “eu” inconsciente, por isso sou atraído pela SOMBRA do personagem que tem algo de mim.
Levi B. Santos disse…
EDUARDO

“não é a toa que na antiga grécia, berço da arte de representar, o ator era chamado de hipócrita, termo que veio a significar hoje em dia, aquele que diz uma coisa e faz outra, tipo aliás, muito denunciado por Jesus”.

Sobre essa sua fala acima, veja bem como entendo o fenômeno da projeção:

O comediante encena os afetos escondidos por trás daquilo que é tido como certeza na consciência do homem que o assiste.

O ator ao representar não está sendo hipócrita. Pelo contrário, ele atinge o lado hipócrita do espectador, ou seja, a idéia que o sujeito faz de si, é posta em questão pelo personagem que, habilmente, atinge o que se esconde por trás do “eu social” de cada um da platéia.

Por revelar o sentimento obscuro de cada ser, é que o dramaturgo, de certa forma era tido como impuro no mundo grego.

Sobre Shakespeare, que escreveu 36 peças, disse o crítico Harold Bloom no seu livro — “A Invenção do Humano”:

“Assistindo as peças de Shakespeare, às vezes, ocorre-me, involuntariamente, está escutando a minha própria voz, ou falando comigo mesmo.”

Sobre isso, você mais do que eu, conhece a fundo, pois já escreveu peça para teatro. Por sinal, ainda almejo conhecer aquela que versa sobre a “morte” (nem que seja o seu roteiro escrito) - rsrss
Marcio Alves disse…
LEVI

Acredito que todo o teatro que tem uma profunda ligação com todos nós, poderia ser resumido em duas categorias:

Comedia e tragédia.

Na comedia representa o que todos nós somos, mas que não aceitamos e nem sequer percebemos ser: insignificantes, tolos, desprezíveis, inautênticos, vivendo uma verdadeira comedia.

Já na tragédia é a onde mais nos elevamos, e representa o que todos nós gostaríamos de ser, mas não somos:
Heróis que triunfam com coragem sobre a tragédia e a morte.
Marcio Alves disse…
Outrossim, em relação a questão que o DUZINHO levantou, se é ou não possível viver sem as mascaras, penso eu que a resposta é:


Não, pois para isto, precisaríamos viver numa ilha, completamente isolados da sociedade, neste sentido, todos nós vivemos uma vida de ator, ou como diria Heidegger “uma vida inautêntica” onde o palco é a própria vida, e nós vivemos toda hora representando papeis que não escolhemos, simplesmente somos escolhido!


Outra coisa ainda; com o passar do tempo, a mesma mascara que usamos irá colar em nós de tal maneira, que se antes era nosso segundo rosto, passar agora a se tornar nosso próprio rosto, ou seja, vivemos de tal forma com as mascaras que herdamos, que quando nos damos conta de que elas não foram escolhidas por nós, já é muito tarde, e simplesmente não podemos mais escolher em não usar elas, pois mesmo quando insistimos em tirá-las, fica a marca delas em nós!


Abraços
Levi B. Santos disse…
MARCIO

Suas inserções de fundo psicanalítico foram perfeitas. Meus aplausos ao ator. (rsrsss)

“O mundo é um palco; os homens e mulheres meros artistas, que entram nele e saem. Muitos papéis cada um tem no seu tempo. Sete atos, sete idades” ( Rei Lear - de Shakespeare)

Para Jung, a “persona” — em latim, “máscara” — opera como mediadora entre o nosso ego e o mundo externo; é um meio termo entre o indivíduo, ou aquilo que ele deveria ser, e a sociedade.

Aprendemos usar a máscara, logo cedo, como criança, quando para ganhar amor e aceitação dos nossos pais, mestres e amigos, aderimos a certos roteiros pré-escritos. A partir daí fomos nos distanciando da essência de nós mesmos, para se encaixar nos padrões da sociedade ou aos ideais do nosso próprio ego.

Na execução de sua peça, o ator, às vezes, toca em aspectos de nós mesmos que uma vez rejeitamos, é quando o aplaudimos.
No aplauso, estou simplesmente dizendo:

“Agradeço-te por mostrares o meu verdadeiro eu”.

Jung diz:
“Se eu me identificar com a máscara, a ponto de achar que ela é eu mesmo e não uma vestimenta para se poder sobreviver, correrei o risco de romper o meu equilíbrio psíquico e me tornar um neurótico”

Daí, ter terminado o meu sucinto ensaio com essa frase:

“Correrás grande perigo, se te identificares demais com o teu papel”.
Hubner Braz disse…
Belo ensaio Levi... Perfeito!!! É digno de um comentário master...
guiomar barba disse…
Levi,

Nem sempre temos consciência de que estamos representando, acredito então que sou hipócrita e covarde quando sei perfeitamente que aquela não sou eu, aquilo não é o que penso, aquele não é o comportamento que aprovo, mas...

Você foi longe. Abraço.