'Vai Malandra' e a bundalização da cultura brasileira



Estava lendo hoje mais cedo, numa matéria no Estadão de 02/01, que o novo funk Vai Malandra, da cantora Anitta, já seria a 4ª música mais ouvida no mundo pelo YouTube. E, segundo uma notícia do portal G1 também recente (20/12), a toada é considerada a primeira em português dentre as mais ouvidas do mundo no Spotify.

Para polemizar mais, o single com participação de MC Zaac, Maejor, Yuri Martins e do grupo Tropkillaz, gravado no Morro do Vidigal em agosto, tem gerado inúmeros comentários devido a uma cena em que Anitta dá o seu bumbum a tapa. Aliás, a maior parte do clipe é focada nas nádegas dessa diva pop.


Não vou afirmar que o funk não seja cultura ou dizer que as músicas deste estilo sejam todas de má qualidade. Tão pouco farei o discurso do falso moralismo ou menos ainda tomarei os ressentimentos das pessoas reprimidas que se trancam no armário das emoções, como se fosse feio a mulher exercer com iniciativa a sua sexualidade perante os homens.

Analisando o clipe e a letra, confesso que nem considero a música uma expressão da liberdade sexual feminina pois o que de fato prevalece ali é uma certa submissão de Anitta aos padrões machistas de uma subcultura que se formou nas periferias das cidades brasileiras após o afastamento da moral tradicional pelos mais pobres no decorrer das quatro últimas décadas. Trata-se de um comportamento onde a mulher adere a uma renúncia de sentimentos e que caracteriza o empobrecimento da sexualidade na qual resta apenas o prazer pelo prazer, com a exploração de poucas partes do corpo humano.

Oras, o que Simone de Beauvoir pensaria do vídeo musical, caso estivesse ainda viva e fazendo um passeio turístico pelo Brasil?! 

Por mais que não seja um fã da Anitta, tenho de admitir que ela soube expressar a figura da "malandra", a qual preenche os desejos de um público masculino, a meu ver limitado, cuja satisfação restringe-se apenas em possuir, por uns breves momentos, uma mulher bonita, vulgar, que dança sensualmente, mexe com o bumbum, rebola até o chão e faz o "taca, taca, taca, taca" com uma boa performance. Ou seja, trata-se do padrão bundalizado que, hoje em dia, dependendo da situação, territorializa-se com facilidade chegando a ofuscar o samba no mês de fevereiro. É como, infelizmente, vejo nos finais de semana de praia cheia em Muriqui, a localidade balneária onde vivo no litoral sul do Rio de Janeiro.

De fato, "na favela onde é pouco e o Brasil sente isso", conforme se lê na tradução da parte final do segundo trecho em inglês da música de Anitta, poucas são as condições para o nosso povo escapar desse processo alienante de bundalização. Está faltando educação e, lamentavelmente, as emissoras de rádio/TV ajudam potencializando a divulgação quando abrem amplas oportunidades para o lixo cultural embora nem sempre ofereçam um espaço suficiente nas suas programações para as músicas de qualidade. Pois para tais empresas vale é o que gera audiência e ajuda a atrair patrocinadores.

Todavia, apesar das centenas de milhões de visualizações do clipe já registradas no YouTube, pude observar um número bem representativo de internautas que manifestaram-se negativamente tal como encontro nas opiniões postadas em diversas redes sociais. Chega a ser quase 20% dentre os que deram um voto de aprovação ou de reprovação, conforme é disponibilizado pelo site. Ou seja, as músicas da cantora, tal como a candidatura do Lula à Presidência da República, convivem hoje com uma expressiva rejeição no meio social, havendo quem considere Vai Malandra um perigoso retrocesso na carreira de Anitta por se tratar de um sucesso de curta duração, do qual ela mesma poderá se arrepender futuramente.


De qualquer modo, outras músicas assim de baixa longevidade devem continuar surgindo nesse país que continua sendo um campo fértil para produções sem qualidade. Seja pela má formação do nosso povo que não o capacita a assimilar conteúdos melhores, ou pela sociedade ainda repressiva, visto que a liberdade sexual por aqui, apesar de todo o rebolado do Carnaval, é mais para inglês ver. Pois, no mesmo ambiente de favela em que convivem o fundamentalismo religioso cristão e a ditadura machista do tráfico, dificilmente veremos resultados diferentes. Até porque os poucos que conseguem superar as más condições de vida pelas vias do estudo e poderiam ser o antídoto contra a bundalização cultural, descem do morro para o asfalto fugindo da violência. 

Bom final de domingo e desejo uma semana menos bundalizada para todos nós!

OBS: Imagens acima reproduzidas a partir do YouTube.

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