Por Maria Ribeiro
Eu não sabia que a gente era tão
forte. Você nos juntou, você nos levou pra rua
Eu já tinha tentado o tênis, a
natação e a ginastica olímpica. Com 14 anos e praticamente conformada com o
pingue-pongue mediano e a pequena moral adquirida nas aulas de redação e
teatro, resolvi dar uma última chance ao judô. Era a derradeira oportunidade
dada à minha existência em movimento. Naquela estrada de terra entre a infância
e a idade adulta, entre aquele ser e não ser absolutamente solitário da cabeça
e do corpo, em meio à inadequação ao balé clássico e à incapacidade de me
relacionar com qualquer tipo de bola — e com aquele garoto bonito que vinha do
São Bento —, me veio a possibilidade do tatame. Saber cair.
Por que não? Me atraíam o
uniforme unissex, o convívio com o cromossomo y, a luta no chão de forma
assumida (quase todas as lutas são no chão, mas poucos têm coragem de admitir),
o contato físico, a selvageria organizada. Foram dois anos sem muita
regularidade, e acho que fui até a faixa amarela, se tanto. Mas gostava do fato
de a aula ser mista, e de haver um certo feminismo kill bill naquela
atitude samurai.
Samurai. Foi assim que me senti
nesses últimos dias. Virando voto, chorando, sendo xingada, dando e recebendo
abraços de desconhecidos, sofrendo por aqueles que se manifestaram e por quem
tinha um amor primitivo — como Regina Duarte — e, quer saber?, mais ainda pelos
que não se manifestaram e se mantiveram no muro. Eu não tenho mais nada a
perder. Estou no chão com a guarda aberta, e já sei que vou perder, mas como é
bonito lutar até o fim.
Meu prefeito é o Crivella, meu
governador é o Witzel, meu presidente é o Bolsonaro. Fora isso, eu gostei
errado durante anos de um cara com jeito de bilhete premiado, tô com a
depilação vencida, atrasei o IPVA e ainda não entreguei aquela sinopse
prometida pra Netflix.
Mas sei cair. E caí com muita
categoria. Gritei até o fim contra a naturalização de candidatura tão vil,
provoquei amigos que temiam se manifestar, chorei com as melhores pessoas de
toda a existência, bebi como nunca havia bebido, fiquei perto dos meus. Marcelo
Rubens Paiva, Xico Sá, Maria Rita Kehl, Leandra Leal, Andreia Horta, Marcelo
Freixo, Caetano Veloso, Flora Gil, Mário Bortolotto, Marcos Nobre, Antonia
Pellegrino, Paula Lavigne, Paulo Betti, Fabio Assunção, Enrique Diaz, Mariana
Lima, Laura Carvalho, Bruno Torturra, Maria Flor, Sérgio Vaz, Gilberto Gil e
mais um monte de gente legal que não vou lembrar aqui.
Bolsonaro, brigada. Eu não sabia
que a gente era tão forte. Eu não sabia que a gente se amava tanto. Você nos
juntou, você nos levou pra rua, e a rua é o nosso lugar. Estamos há dias nos
beijando e segurando a mão um do outro. Às vezes, a gente até dança. Sem Lei
Rouanet, acredita? A gente dança de graça. Faz teatro pra cinco. Se ama por
hábito. Cai bonito como no judô. Cai junto. E aproveita pra ficar deitado.
Daqui, de onde estamos, temos visto cada estrela que você nem imagina. Quer
saber? Eu entendo sua raiva da gente. Ver estrela é mesmo uma arte. Todo mundo
que vê estrela é artista. Mas ó: se você quiser, deita aqui que a gente te
ensina. Sem mágoas. Só dá um tempinho porque agora a gente tá em carne viva.
Aliás, mais viva do que nunca.
Com este texto me despeço dessa Confraria, que um dia já foi Fora da Gaiola, e que hoje, é um triste retrato de gente engaiolada pelo fascismo.
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