Escola Sem Partido: retrocesso e decadência na educação brasileira




Por Afrânio Boppré*


No início de dezembro de 2018, ainda sem ser empossado, o senador eleito Flávio Bolsonaro deu entrevista à Globonews, na qual além de vários despautérios declarou que dará atenção máxima ao tema Escola Sem Partido (ESP), no exercício de seu mandato. Dias depois, na tentativa de aprovar na Câmara Federal, em Brasília, uma das versões da mesma lei, o deputado pastor Eurico (Patri) classificou “que o Escola sem Partido evitará que os alunos se tornem soldados do mundo esquerdopata”.

Jair Bolsonaro, por sua vez, não deixou por menos, gravou uma mensagem em vídeo que foi amplamente difundida nas redes sociais estimulando estudantes a gravarem com seus aparelhos celulares os “professores doutrinadores”. Na prática, o clã Bolsonaro e sua equipe governamental aderiram a um movimento de fanáticos de extrema-direita, inicialmente idealizado pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, e passaram a empunhar esta bandeira com o nítido objetivo de fazer uma impiedosa perseguição à liberdade de pensamento e à profissão de professor.

O nome do movimento já é por si só uma aberração. Aproveitando-se do fato de que os partidos em geral gozam de pouco prestígio na sociedade, inventaram que existe partido político nas escolas e embrenharam-se na “nobre” tarefa de salvar as crianças desta gigantesca ameaça. É por esta razão que eu digo insistentemente que o antônimo de Escola sem Partido não é Escola com Partido; é escola livre, plural, democrática, inclusiva, cidadã e laica. A escola é um espaço com primazia para abrir a reflexão sobre a vida, seus impasses, desafios, dificuldades e caminhos. Escola é muito mais do que superar a barreira da ignorância ou se reduzir ao aprendizado mecânico “Eva viu a uva”.

Insisto em falar a cerca do nome desse movimento de extrema-direita porque ele foi metodicamente pensado, planejado, marqueteiramente calculado e é indispensável a sua desconstrução, seu rebatimento. Muita confusão ele tem gerado no meio inclusive do professorado. Senão vejamos, imagine você se alguém lançasse um movimento com o seguinte tema: Empresa sem Tortura. Por óbvio que ele de imediato atrairia a simpatia de muita gente, afinal quem aceita a tortura é um “grupo” muito reduzido em nossa sociedade. A imensa maioria acabaria concordando com a tese lançada na campanha, no movimento. Eticamente, é necessário nos perguntarmos se de fato existe tortura dentro de empresas? O que se entende por tortura? Quantas empresas praticam a tortura no Brasil? De quem são esses dados estatísticos? Como foram colhidos? A quem interessa? Vamos estimular que os trabalhadores gravem com seus celulares práticas torturantes como forma de denúncia? Etc.

Destarte, nossas escolas foram estúpida e criminosamente lançadas numa onda impiedosa de ataque. Até mesmo setores da mídia, deixando os ensinamentos do bom jornalismo de lado, assumiram existir partido dentro da escola e abriram um descomunal espaço para esta pauta.

A grosso modo há um conflito base, este não nasce de ideias soltas, vindas de outro mundo, é um conflito que está posto em várias dimensões da sociedade. O conflito a que me refiro é objetivo e possui uma materialidade social real. Ele aparece na falta de esgoto na periferia das cidades, na condição de ser mulher, ele está presente nas condições de transporte da classe trabalhadora, na relação entre salário do trabalhador e no lucro do patrão etc. A Escola sem Partido é também expressão desse mundo e por isso, não é neutra. Ela é o conflito posto noutra dimensão por um determinado segmento da sociedade que pretende como estágio supremo a eliminação, a negação do outro, a inexistência do contraditório. Como objetivo maior, o movimento Escola sem Partido não nasceu com o propósito de “defender” a escola, ele advoga a tese da escola de pensamento único. Por trás dessa tese, me parece que temos elementos de uma visão pedagógica: Pedagogia Tecnicista. Segundo Dermeval Saviani em Escola e Democracia essa corrente pedagógica parte:


[…] do pressuposto da neutralidade cientifica e inspirada nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. (SAVIANI, 1984)

Parece-me ainda que nesse movimento há interesse em suprimir subjetividades, troca de opiniões, troca de experiências e ensinamentos na relação professor/ estudantes. Não bastasse tudo isso, ainda às vezes eu me pergunto se a ESP não seria uma espécie de “abre alas” para determinados setores do capital que investem na educação e estão preparando terreno para a potencialização do ensino a distância – educação/mercadoria – ensino robotizado.


STF DEFINE INCONSTITUCIONAL O PROJETO ESP

O tema foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) em ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), sendo que o ministro relator Luís Roberto Barroso decidiu pela inconstitucionalidade na íntegra do projeto de lei promulgado pela Assembleia Legislativa de Alagoas por entender que em matéria de diretrizes e bases da educação nacional a competência é privativa da União e em outros temas poderá haver competência concorrente entre a União e o Estados, no despacho o ministro também exarou a seguinte opinião sobre a ESP:


É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia.

A despeito da decisão monocrática do STF, e, portanto, não definitiva, o tema cresce na opinião pública. Estamos vivendo uma conjuntura política no Brasil que opiniões conservadoras crescem vertiginosamente no seio da sociedade, e muitas vezes, por falta de um espaço adequado para debate e esclarecimento.

Ainda sobre a suposição que levanto, talvez com certa benevolência de minha parte, reconheço, relativa a existir proposta pedagógica por de trás da ESP, o ministro do STF alude:


A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência da neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala.

Curioso notar, que ao mesmo tempo em que a posição do ministro Barroso é avançada, o STF resolveu adiar a decisão sobre o assunto. No momento em que escrevo esta contribuição ao debate, o STF surpreendentemente se esquivou em exarar sua posição, suprimiu da pauta o tema. Estaria o STF dando tempo para a referida matéria fluir na Câmara Federal? Até que ponto estaria o STF se acovardando para declarar nos termos do relator: “não tenho dúvidas sobre a plausibilidade da inconstitucionalidade integral da Lei 7.800/2016” (Lei de Alagoas).

Nesta toada, a conservadora-master das revistas semanais brasileiras, a revista Veja, abriu opinião de capa contra a ESP afirmando ser a abertura de um clima de caça às bruxas e que tem tudo para piorar o ensino brasileiro. A revista defende inclusive a pluralidade de ideias e a qualificação do professor:


A todo bom professor cabe estimular o confronto de ideias e o livre pensar, inclusive expressando seu ponto de vista, mas não catequizar – uma linha fina que exige discernimento constante. Quanto mais qualificado for um professor, menor a chance de postura equivocada. Não é o caso de impor leis nem de pregar cartazes na parede do colégio com os “deveres do professor” – basicamente, não falar nada de que os pais discordem – , como prevê um anexo ao projeto. (REVISTA VEJA Edição 2608 – 14 de novembro de 2018 p.76).EDUCAÇÃO DE QUALIDADE EXIGE PROFESSORES(AS) QUALIFICADOS(AS)

Por óbvio, ser contra a ESP não significa aceitar que o(a) professor(a) faça o que quiser e o que bem entender. A profissão traz consigo uma postura ética, seu poder em sala de aula é amplo, mas não é pleno. E o próprio profissional da educação sabe disso. O fato de haver desvios em alguns casos, não pode nos levar a condenar a todos. É sabido, porém, que o ato de educar é diferente do ato de ensinar. Ensinar é uma transferência de conteúdos prontos. A educação é um processo de preparação para inserir a criança, o jovem e o próprio adulto na sociedade.

A educação contém o ensino, mas o inverso não é verdadeiro. A legislação brasileira fala em planos nacional, estaduais e municipais de educação e estes não se resumem ao ensino. As universidades trabalham com o tripé (ensino, pesquisa e extensão) de modo a se relacionarem com a sociedade. Ou seja, é farto o entendimento entre os especialistas que o Brasil precisa de educação de qualidade e de educadores qualificados. Para alguns, esse entendimento pode representar uma ameaça. Preferem a constituição de um processo de adestramento, meramente robótico, ou ainda, a transferência de um saber secular e contido em manuais de páginas amareladas. A educação libertadora exige por pressuposto a liberdade do professor em agir com o compromisso de levar o educando a fazer livremente suas escolhas. Ora, este entendimento produz a possibilidade de se abrir portas para a negação do mundo existente, do mundo tal como ele é, e isso traz desconfortos para os setores conservadores e é interpretado como “esquerdopatia” e “doutrinação”. Para esses setores, o conceito de liberdade é restrito, alcança tão somente os limites da promoção de seus valores. Volto a dizer: a Escola Sem Partido é uma expressão do conflito social real existente nas relações sociais.

Não que eu esteja encantado, mas o despachado do ministro Barroso no tocante à Medida Cautelar requerida pela Contee e pela CNTE ataca diretamente a ESP. Senão vejamos:


Vale notar, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula.


NINGUÉM LARGA A MÃO DE NINGUÉM

Ora, a resposta a esta estúpida campanha tem que ser altiva. Deve ser tão qualificada quanto o esforço de educar que nossos professores fazem de norte a sul do nosso país. Mas uma coisa é certa, os professores e professoras não podem temer as ameaças e os constrangimentos. Os estudantes, mesmo quando estimulados e ativos em favor da ESP, não são nossos inimigos. Ao contrário, estariam eles dando sinais claros que precisam de ajuda educacional. Nunca as escolas foram tão importantes para defender a democracia e a liberdade. Os sindicatos de professores(as), as associações de pais e mestres, os(as) secretários(as) municipais de educação, os departamentos de pedagogia de nossas universidades, a imprensa livre, a concentração unitária de um leque plural de forças deve se associar em favor da defesa do princípio da liberdade e da democracia. O Brasil não cairá nesta armadilha.


(*) Afrânio Boppré é professor, mestre em geografia e vereador pelo PSOL em Florianópolis

OBS: Texto extraído do portal da Fundação Lauro Campos, conforme consta em http://www.laurocampos.org.br/2019/01/29/escola-sem-partido-uma-contribuicao-o-debate/ 

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