As amarras do Brasil segundo Ciro Gomes

 






Ao básico: crescer é quando uma loja nova abre e outra não fecha e quando uma indústria nova abre e outra não vai à falência. Para isto é necessário que as famílias consumam mais. Para isso é preciso  que elas tenham mais renda e mais crédito, e que o governo, no curto prazo, incremente seu investimento em infraestrutra.

Mais que isso: é fundamental que haja um ambiente institucional estimulante e, no medio e longo prazo, toda a nação econômica ganhe produtividade. Isso só é obtido com notáveis ganhos em educação, ciência, tecnologia, inovação e com a disseminação das práticas produtivas da economia do conhecimento entre todos os empreendedores. Em especial entre aqueles de nossas imensas periferias urbanas e rurais.


Miséria de massa, pobreza extrema e educação precária não permitem desenvolvimento. É necessário ainda que haja idealmente uma total formalização da economia. Em economês: formação bruta de capital alta – ou pelo menos em elevação – crédito acessível, ocupação da capacidade instalada ociosa do aparato produtivo, agregação de valor nos bens e serviços produzidos, entre outros.


NADA disto está acontecendo no Brasil! Ou acontece de forma marginal, episódica, insuficiente e insustentável.

Como é o caso de fazer promoção de venda de estoques de carros e de linha branca ou subsidiar passagens aéreas com renúncia de tributos. Uma aberração falsamente simpática, porque a conta está sendo espetada nas costas do povão e da minúscula fração de nossa igualmente sofrida pequena burguesia.


O “cash back” do governo à industria automobilística moribunda, seria, por exemplo, dinheiro suficiente para pagar TODAS as cirurgias eletivas, dos que hoje vegetam em uma fila maior que um ano de espera. Sem falar das doenças graves, como  o câncer, em que o tempo perdido decreta morte certa. É a tragédia do nacional consumismo movido a lobbies e fisiologia .

Voltemos aos índices.


LEIAM E GRAVEM estes números porque não demora e todos perceberão a realidade que está por trás deles.


Nada menos que 1,7% dos 1,9% de crescimento anotado como base para a “euforia” artificial da propaganda – e para alentar os interesses do dominante setor financeiro -, foram produzidos pelo agronegócio, tão satanizado pelas generalizações preconceituosas.

A safra de soja foi 21% maior do que a do ano passado e foi colhida no primeiro trimestre. Mas não haverá este efeito doravante.


Ora, este setor, incluindo, até a ponta, os serviços de transporte, responde por no máximo 25% de nossa economia. Isso significa que os demais 75% do aparato produtivo brasileiro respondem por pífios 0,2% deste “crescimento”.


Ou seja, confirmado pela máxima que diz que os números não mentem jamais, significa que a economia que verdadeiramente emprega e gera renda pública está parada ou em queda. A melhor lição a tirar para quem sonha e luta para mudar o Brasil seria a de perceber porque isso acontece.


De novo, é o modelo!

O neoliberalismo turbo financeirizado ao extremo – praticado unicamente no mundo pelo modelo brasileiro – teima em desconhecer pelo menos três assimetrias. Fecha os olhos para três diferenças críticas entre nossas condições nacionais de produzir e trabalhar versus a concorrência que enfrentamos no mercado nacional e no comércio exterior: custos e perfil do financiamento, sofisticação tecnológica e escala.


O empreendedor rural brasileiro é, por media, extraordinário mas não há nenhuma razão para supor que sejam melhores ou tão melhores que nossos empreendedores urbanos. É o modelo! A agropecuária está protegida dos aberrantes juros brasileiros por pesados subsídios públicos no crédito a ela destinados.


Enquanto não se sabe nem remotamente (apesar da propaganda pesada) o que será da reforma tributária (falaremos disto no próximo tópico desta carta), o fato é que sobre o agronegócio brasileiro a carga tributária efetiva é mínima ou quase nula, diferentemente da enorme carga sobre os setores formais da economia urbana (vale lembrar, indústria inclusive construção civil, comércio e serviços).


Só para se ter uma noção, a agricultura tem um crédito presumido de, no mínimo, 25% nos tributos sobre valor adicionado para descontar (tendo pago ou não) no imposto devido nas outras etapas entre produção e comercialização. Só isto já evidencia a brutal diferença de tratamento dado pelo Estado brasileiro (esquerda? Direita? Centro? Tanto faz) ao poderoso mundo rural brasileiro.


E ai de nós se não fizéssemos isso, porque a realidade é complexa.

Na balança comercial brasileira o buraco nas contas de manufaturados se aproxima de U$ 130 bilhões de dólares. Quem tapa este rombo é o agro, o petróleo e a mineração. Está na EMBRAPA, ou seja, na mão do estado, o fio da meada que produziu e segue produzindo ganhos excepcionais de produtividade no campo brasileiro. Não era possível produzir soja no cerrado, antes da pesquisa e da tecnologia promovidas pelo estado nacional brasileiro.

Hoje já se produz trigo em pleno semiárido do Ceará e com primeiros números de produtividade muito estimulantes. Felizmente temos TECNOLOGIA de ponta no campo. Mas, enquanto isso, infelizmente regredimos na economia urbana.


A regressão é tamanha que talvez tenha nos deixado em uma insuperável distância das vanguardas do mundo da economia do conhecimento. Tudo causa de nossas práticas desfasadas por baixo investimento público e privado.

E, paradoxalmente, tropeçamos também em detalhes de escala global. Na nossa posição de membro do clube dos três maiores produtores mundiais de alimentos temos volume para competir vantajosamente, na área rural, com qualquer país do mundo.


Mas, absurdamente, importamos do estrangeiro  quase metade de nossos custos de produção. É atividade portanto “hedgeada” ou seja, o que se perde e se ganha com as brutais variações em nossa taxa de câmbio meio que se compensa no tempo. (Exportar manufaturados com câmbio valorizando artificialmente o Real é impossível. Importar com moeda artificialmente “forte” é moleza).


As distorções e oscilações no câmbio, na verdade, influenciam em quase tudo. Na prática, com a manipulação da taxa de câmbio sai mais barato, por exemplo, sair de São Paulo para Miami do que visitar Fortaleza ou Natal. Os governantes usufruem de popularidade transitória e quebram o País.


Mas a falência do modelo e suas outras causas e consequências produzem saldos ainda mais trágicos: 35 anos de democracia eleitoral resultam em 70 milhões de humilhados nas listas do SPC/SERASA; mais da metade da economia estão na informalidade; temos a pior concentração de renda entre todas as economias organizadas do mundo e nossa industria de transformação, base sem a qual a nova economia do conhecimento não acontecerá, caiu de quase 30% para quase 11% do PIB, de 1980 para cá. Um número que ostentávamos no longínquo ano de 1908!

O desemprego permanece em renitentes 8,6% e temos o pior salário mínimo da América do Sul, exceto o da Venezuela com seu regime autoritário e disfuncional. Sem esquecer uma questão crucial: o desempenho pífio nas avaliações de qualidade na educação nos fazem vislumbrar um futuro ainda mais ameaçador.


O nosso perfil demográfico é igualmente preocupante pois o crescimento populacional ainda é alto mas em rápido declínio. Crescemos ainda a quase 2 milhões de pessoas por ano, mas estamos envelhecendo mais rápido do que qualquer nação já envelheceu, o que significa que está se fechando o generoso bônus demográfico que tínhamos neste período .

Reformas são muito menos difíceis de promover quando há muito mais gente jovem engajada no esforço produtivo do que idosos dependentes de seguridade social. Mantidas as esperanças, temos que ter clareza de que a realidade demanda outra atitude política de nossos governantes e de nossa sociedade.


O Brasil só começará a ter potencial de mudança, no que verdadeiramente interessa, se alcançarmos taxas mínimas de crescimento entre 4% e 5% ao ano. (Ainda assim, demoraríamos 30 anos para alcançar o atual padrão de desenvolvimento humano da Espanha, por exemplo). Este é o patamar a partir do qual a economia passa a produzir renda acima de eventuais ganhos de produtividade (está acontecendo hoje nas atividades melhor remuneradas e somente aí).

Só a partir deste numero de crescimento as receitas públicas poderão indicar melhoras substantivas no investimento em infraestrutura (hoje aplicamos menos de um terço do mínimo necessário só para dar manutenção ao que já temos), mas especialmente no enfrentamento inadiável de um choque educacional, cientifico, tecnológico e de inovação (hoje aplicamos muito menos de um quinto do necessário para um País como o nosso de renda intermediaria e com tantos potenciais).


A última taxa de investimento total conhecida, colhida já no inicio do segundo trimestre de 2023 está atolada em míseros 16,6% do PIB. Não chegaremos  a 5% de crescimento sem algo ao redor de 21% de investimento.

E esta taxa de poupança doméstica não é consequência de conversa fiada ou de otimismo, é consequência, não me cansarei de repetir, de arranjos institucionais que a política e somente ela é capaz de fazer.


Mesmo com toda esta gravidade e urgência, não se está fazendo nada para resolver os problemas estruturais, a não ser na retórica apressada dos que nos governam todos estes anos. Uma retórica enganadora que classifica como sérios meros arranjos superficiais e estruturalmente inconsequentes.

Lembremos, para ficar em dois exemplos recentes, as propaladas reformas da previdência social e do sistema tributário. Tudo refletindo o conformismo mais asfixiante que já vi na nossa chamada sociedade civil.


“É o que é possível”, isso o que mais se ouve entre os que nos governam. Um vergonhoso álibi

para a falta de projeto, para o governismo fisiológico e corrupto, para a falta de imaginação institucional ou pura e simplesmente para a covardia mais vergonhosa de sequer tentar. Sei que não é fácil. Mas não tentar é crime de lesa pátria. Se não buscarmos soluções efetivas, estaremos delegando esta tarefa para arqueólogos ou historiadores que pesquisarem, no futuro, os escombros de uma ex-nação.


Por óbvio, deixo de comentar, hoje, a aberração da taxa de juros brasileira, uma equação que, quase sozinha, poderia explicar a absoluta impossibilidade de crescimento econômico entre nós. Pois se a remuneração dos papéis do governo é mais alta que o lucro da atividade econômica esta, simplesmente, pára!


Simples de entender: quem tem dinheiro prefere a renda fixa sem riscos ou trabalho, sem produzir um prego. E, quem não tem, evidentemente não vai produzir com dinheiro emprestado para ter um lucro menor que os juros que tem de pagar aos bancos. O pior é que frente a relutância burra e suspeita da atual diretoria do Banco Central, bastaria uma simples iniciativa do presidente da República.


Pois, mediante provocação do Conselho Monetário Nacional (os ministros da fazenda e do planejamento o controlam) ele poderia demitir a direção do Banco Central, tendo só que submeter esta medida ao Senado Federal, onde acabou de obter votação consagradora para a homologação do nome do seu ex advogado para vaga no Supremo Tribunal Federal. É, portanto, questão politica por definição.


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Ciro Gomes

Ciro Gomes.com.br

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