sábado, 6 de setembro de 2025

ERIKA HILTON E A LIBERDADE DE EXPRESSÃO

 


Erika Hilton perde ação de transfobia; livre expressão vence

Ao se referir à deputada de acordo com seu sexo biológico, Isabella Cepa não pretendia insultar uma mulher trans


Por Thaís Oyama


Vai ser chatíssimo: as lésbicas negras sadomasoquistas vão disputar direitos com os pais gays brancos protestantes etc. etc. Marcuse não é nada comparado com o que vem.” A frase, de Jorge Mautner, descreve o que o compositor e profeta nas horas vagas imaginou que aconteceria quando a política de esquerda baseada na luta de classes caducasse e fosse substituída pela luta das minorias — que então passariam a se engalfinhar.


    A fala está no livro “Verdade tropical”, de 
    Caetano Veloso, e, se a memória do
    baiano não falhou, ele a ouviu de Mautner nos anos 1970. Isso foi cinco
    décadas antes de a escritora britânica J.K. Rowling inaugurar a briga entre
    feministas e ativistas trans que a fez ser cancelada e ameaçada de atirarem
    seus livros à fogueira (para quem passou os últimos cinco anos confinado a
    alguma bolha,o pecado de Rowling foi ter feito troça da ideia, defendida por
     ativistas trans, de que mulheres biológicas deveriam ser chamadas de
    “pessoas que menstruam” para diferenciá-las das mulheres trans, que deveriam
    ser chamadas de mulheres, que não menstruam por terem nascido com
     sexo biológico masculino).

No mesmo ano do linchamento da criadora de Harry Potter, a contenda 

chegou ao Brasil pelas mãos de Erika Hilton, mulher trans eleita deputada 

federal em 2022 pelo PSOL. Ela decidiu processar, sob acusação de transfobia, 

a designer gráfica e ativista feminista Isabella Cepa, que, em 2020, 

comentando o resultado das eleições para vereador em São Paulo, 

lamentou no X que “mulheres verdadeiramente feministas não foram eleitas” 

e que “a mulher mais votada de São Paulo é um homem”.


Isabella é uma feminista de cepa radical. A corrente teórica a que se 

filia entende que mulheres trans, por terem nascido homens, não 

passaram pelas mesmas experiências de opressão a que foram submetidas 

as que vieram ao mundo já nessa condição. Chamá-las de “mulheres”, 

crê essa corrente, dilui a luta feminista, além de pôr em risco a segurança

 de mulheres biológicas obrigadas a dividir com elas espaços como banheiros

 ou presídios. Ao se referir à deputada Erika de acordo com seu sexo biológico,

 portanto, Isabella não pretendia insultar uma mulher trans, mas expressar

uma crença alinhada ao feminismo crítico de gênero, grupo 

em que milita — e que, até onde se sabe, não foi posto na ilegalidade ainda.


Foi mais ou menos o que entendeu a Justiça ao arquivar na terça passada 

a ação contra Isabella. O ministro Gilmar Mendes, do Supremo, referendou 

o que já concluíra a primeira instância: o que a feminista escreveu no X 

não é discriminatório, porque não tenta cercear direitos de mulheres trans e, 

como manifestação de opinião, não ultrapassa os limites da

liberdade de expressão. Comentando a decisão, Erika Hilton disse: 

“Mais grave é a narrativa de que está liberada a transfobia no Brasil. 

Isso tem aumentado a violência contra mim e a comunidade LGBTQIA+”.

O processo contra Isabella durou cinco anos. Em julho deste ano, ela recebeu da 

União Europeia o inédito status de refugiada política perseguida por 

posições de gênero. Antes disso, por causa da repercussão do caso, perdeu

oportunidades de emprego no Brasil, viveu sob uma bateria de xingamentos, 

Recebeu ameaças contra ela e sua família e votos de que fosse estuprada e morta. 

O grosso dessas mensagens não partiu de fascistas da direita. 

Isabella afirmou em entrevista que a esquerda abandonou 

as mulheres como ela.

A esquerda, ou parte dela ao menos, sempre teve por hábito defender 

a liberdade de expressão para quem é do seu grupo e ficar bem quieta 

quando o alvo da censura é gente de direita. Agora, com o fogo cruzado

no campo das minorias, estende a prática da omissão ao próprio quintal. 

Também merece desprezo quem lá não adere ao pensamento único ou ousa 

contestar as vacas sagradas do dogma progressista. Para esses, 

sobra só a patrulha moral — a vigilância e a punição. 

Mautner acertou, ficou chatíssimo.


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Publicado no Jornal O Globo.

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