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O primeiro som que Joaquim ouviu naquela manhã foi o canto rouco de um galo perdido entre telhados apertados, ecoando pelas vielas úmidas do Morro do Castelo, misturado ao barulho abafado de crianças correndo e alguém acendendo o fogareiro com lenha úmida. Um cheiro denso de maresia, peixe seco e fumaça tomava o ar — aquele cheiro que, com o tempo, os moradores deixavam de notar, mas que impregnava cada calça, cada lençol, cada prece sussurrada antes de dormir.
A casa era pequena, com paredes brancas que descascavam como pele queimada de sol. Rita, sua mulher, mexia um café ralo, enquanto os três filhos ainda sonolentos se revezavam na bacia d’água para lavar o rosto.
— O couro tá caro outra vez? — ela perguntou, sem olhar, mexendo o líquido como quem mexe destino.
— Couro, comida, remendo pra alma… tudo caro. — respondeu Joaquim, calçando as botas gastas cuja sola ele mesmo remendara três vezes.
Antes de sair, passou os dedos no cabelo da filha menor, que segurou sua mão com força, como se pedisse a garantia de que o mundo não mudaria naquele dia. Ele sorriu, mas carregava nos olhos o cansaço dos que já viram muitas promessas serem levadas pelo vento da baía.
Descida ao Centro — a cidade pulsando como uma forja
As vielas eram estreitas e escorregadias. Homens desciam com cestos, mulheres subiam com latas d’água, crianças corriam descalças como se o chão não tivesse pedras. No ar, pregões:
“Olha a banana-da-terra!”“Água boa! Água de chafariz!”“Quem quer doce de coco, que é hoje e não amanhã?”
Quando alcançou a Cidade Baixa, os sons se multiplicaram. Bondes puxados por burros passavam rangendo, carroças carregadas de carvão e lenha disputavam espaço com senhores de casaca que se equilibravam sobre calçadas estreitas e esburacadas. A pólvora das tropas, que se movimentavam desde cedo pelo Campo de Santana, dava à atmosfera um perfume de tensão que poucos entendiam, mas muitos sentiam.
Joaquim olhou de relance e viu oficiais se movimentando, bandeiras, gritos, cavalos.
— Mais um ensaio pra parada — murmurou, com a indiferença dos que não podiam perder o dia por curiosidades alheias.
A roda do trabalho — martelo, couro e confidências
Sentou-se próximo à Rua do Ouvidor, sua oficina improvisada. Estendeu a tábua, afiou a sovela, colocou o pedal de ferro na posição. O mundo podia tremer, mas sapatos sempre arrebentavam.
Seu primeiro cliente do dia, um funcionário público, aproximou-se reclamando:
— Parece que vai ter confusão hoje… ouvi dizer que político tá brigando com militar.
— Enquanto não brigarem com o sol, eu continuo vendo — respondeu Joaquim, prendendo o calçado no joelho.
Mais tarde, um carregador do porto, mãos enormes e postura curvada, largou uma bota quase destruída.
— Três mil réis pra deixar nova — disse Joaquim, examinando.
— Nova eu nunca fui, mestre… mas firme eu já tive vontade de ser — disse o homem, com um sorriso triste.
História diante dos olhos — mas sem legenda
Pouco depois do meio-dia, o burburinho tomou forma. Uma corrente humana arrastou curiosos até o Largo do Paço. Joaquim, segurando ainda o martelinho, seguiu por instinto.
Viu oficiais, militares, discursos, ordens, cumprimentos, gestos triunfantes. Não entendeu nada, mas sentiu que havia algo maior do que desfile. O ar vibrava com palavras que ele não alcançava, mas que pareciam importantes demais para quem tinha as mãos manchadas de graxa e cola.
— Hoje é o dia! — gritou um rapaz alto com livros debaixo do braço. — O Império caiu! A República nasceu!
A multidão reagiu com aplausos tímidos, olhares perdidos, alguns vivas dispersos. Joaquim coçou o bigode e disse:
— Se a tal República me arrumar couro mais barato e barriga cheia pra esses moleques… eu bato palmas amanhã.
E retornou, porque o mundo, para quem vive do próprio suor, não tinha intervalo cerimonial.
Retorno ao morro — o silêncio depois do trovão
Na subida do fim da tarde, o morro parecia igual, como se o vento tivesse guardado a novidade num lugar onde fome e esperança já dividiam espaço demais. As pessoas comentavam apenas:
Rita o recebeu preocupada:
— Foi guerra?
— Nada… só trocaram o nome do dono da chave — respondeu, lavando as mãos num pote com água suja e morna.
Naquela noite, enquanto o morro se calava sob o céu úmido, Joaquim encostou a cabeça e pensou:
“O governo muda lá embaixo, mas o couro estraga aqui em cima. Amanhã tem serviço.”
E adormeceu, sem saber que a história o tinha tocado no ombro e seguido adiante — sem pedir licença.
📷: Rua Primeiro de Março, Rio de Janeiro, capital do Brasil, 1889.

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