José Afonso da Silva nasceu no interior de Minas Gerais, em uma pequena fazenda, sendo o segundo de treze irmãos. Sua vida, marcada desde cedo por dificuldades e escolhas humildes, revela uma determinação invencível: ainda jovem, trabalhou como padeiro, mecânico, garimpeiro e alfaiate para poder estudar, mostrando que o sonho de tornar-se jurista não era fruto de privilégio, mas de persistência.
Mudou-se para São Paulo aos 22 anos, completou os estudos por meio do supletivo e, aos 28 anos, ingressou na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), onde formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais — marco inicial de uma trajetória cujo impacto ultrapassaria gerações.
Pilar do constitucionalismo brasileiro
A trajetória pública de José Afonso é plural: foi advogado, oficial de justiça, procurador do Estado de São Paulo, ocupou cargos administrativos, como chefe de gabinete da Secretaria do Interior e assessor da Secretaria de Segurança, e chegou a ser Secretário de Justiça e Segurança Pública no Estado.
Mas sua contribuição decisiva veio como jurista e constitucionalista: convidado como assessor da Assembleia Nacional Constituinte de 1987–1988, participou ativamente da redação da Constituição Federal de 1988 — a “Constituição Cidadã” — ajudando a consolidar um marco jurídico e institucional fundamental para o Brasil.
Entre as inovações atribuídas à sua atuação constitucional está a inclusão do conceito de “Estado Democrático de Direito” no texto constitucional e a concepção de mecanismos de proteção dos direitos fundamentais, como o direito ao “habeas data”.
Mestre das Arcadas, formador de gerações
Na vida acadêmica, José Afonso foi figura central. Tornou-se livre-docente pela USP e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e foi professor titular no Departamento de Direito Econômico e Financeiro da USP. Lecionou também em outras instituições, formando uma infinidade de juristas, magistrados, advogados e professores — muitos dos quais hoje ocupam posições de destaque.
Sua obra doutrinária é monumental. Entre seus livros, destaca-se Curso de Direito Constitucional Positivo, frequentemente apontado como o estudo mais completo e atualizado sobre a Constituição, usado como referência essencial por estudantes, advogados e magistrados. Outro livro importante foi Poder Constituinte e Poder Popular, que contribuiu de modo decisivo para o entendimento e a teoria da soberania popular e do papel do poder constituinte no ordenamento jurídico.
Doutrina viva nos tribunais e militância pela democracia
A influência de José Afonso perdurou não apenas nos livros e salas de aula, mas também nas decisões da mais alta corte do país: segundo levantamento da própria USP (1988–2012), ele foi o constitucionalista mais citado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em julgamentos de controle concentrado — o que atesta a densidade e a atualidade de seu pensamento.
Mesmo em idade avançada, José Afonso manteve-se atuante e engajado na defesa do Estado democrático de direito. Em 2022, durante a leitura de uma nova “Carta aos Brasileiros”, reafirmou com veemência a importância de resistir a ameaças autoritárias e preservar os valores constitucionais — visão coerente com sua trajetória como educador, jurista e cidadão comprometido com a justiça e a cidadania.
Um legado que transcende o tempo
Com sua partida aos 100 anos, o Brasil perdeu não apenas um grande jurista, mas um verdadeiro arquiteto do constitucionalismo moderno, um mestre que transformou o direito em instrumento de dignidade, liberdade e justiça social.
Seu nome permanecerá vivo na doutrina, na jurisprudência e na consciência institucional do país — ecoando nas salas de aula, nos tribunais, nas leis e nos corações de quem acredita no valor da Constituição como guardiã dos direitos e da democracia.
Que sua memória inspire as futuras gerações a cultivar o direito como arte do possível e ao mesmo tempo alicerce da transformação social.

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