“40 dias no Vale da Sombra da Morte”


Título original: Carta a um Confrade
 
Caro confrade Márcio

Dias atrás me pediste para fazer uma resenha crítica de teu livro recém lançado ― “45 Dias de Pânico”. Confesso que me senti incapaz de realizar tal façanha, ante a impossibilidade de tratar de um assunto tão intrínseco subjetivo e altamente individual. Preferi, te escrever uma carta, ao estilo dos velhos tempos em que nem de longe imaginávamos o advento de um progresso tecnológico tão atraente como o da internet.

Recebi teu livro por e-mail, e comecei a lê-lo aos poucos, para degustar melhor. Na ocasião, em uma mensagem postada no teu Face, falei que estava iniciando a leitura de tua passagem pelo “Vale da Sombra da Morte” ― expressão de grande valor metafórico e muito conhecida entre nós, que tivemos um passado não mui agradável pelos meandros da religião. Ressalte-se aqui, que os arquétipos religiosos plantados nos arquivos mais profundos de nossa psique são indeletáveis, e a todo momento, sem que percebamos, estão eles a enviar ressonâncias para o tempo presente.

Como você bem sabe, a psicanálise jamais teria existido sem o pano de fundo dos símbolos e dogmas religiosos da tradição judaico-cristã, a qual, por sinal, é a base de toda a cultura do mundo ocidental. Os grandes expoentes da Psicanálise beberam dessa fonte inesgotável: Freud (seu herói era o Moisés retratado por Michelangelo) fez uma leitura partindo dos mitos judaicos, considerando a religião uma “ilusão infantil” ou neurose obsessiva(mas quem não tem um pouco dessa “loucura”? Se não fosse a tal da neurose nesse nosso mundo esquizóide, não existiria o artista, que é justamente aquele que consegue dar as suas experiências dolorosas um significado elevado para si e para os demais). Jung, brilhantemente aproximou sua nascente ciência da rica simbologia do Protestantismo (seu pai era um pastor protestante). Lacan, católico, por sua vez, conciliou Freud com a simbologia dos termos aparentemente ambíguos presentes nas histórias bíblicas, substituindo a palavra “Deus!” ou imago-deus de Jung, por “Grande Outro”.

Logo na página 25 do teu livro, um insight, ou mesmo o sentimento “religa-re”(de natureza religiosa) creio eu, vindo dos obscuros porões do teu inconsciente, me prendeu a atenção, quando repetiste uma das frases mais contundentes do messias que os evangelhos relatam: “A Minha Alma está Angustiada até a Morte.”

Na página 75, para expressar a forte dimensão analógica de tua angústia como companheira inseparável (e não poderia ser diferente), recorreste as regiões abissais dos arquivos arquetípicos religiosos escondidos em tua psique: “...igual a Jesus disse do seu Pai nos evangelhos. Que Ele e o Pai (Deus) eram um.”

Ainda sobre a desditosa e inseparável angústia, na página 89, eis que me deparo com uma ressonância poderosa do tempo em que eras pregador das Boas Novas: “Por que Afinal Tenho Que Recorrer à Bíblia? Tu mesmo respondes de forma profunda, tanto do ponto de vista psicanalítico, quanto do ponto de vista teológico: ...porque ninguém em sã consciência deseja e vai ao encontro dela…, nem precisa mesmo…, ele é quem vem sempre ao nosso encontro.” O conteúdo do inconsciente é assim: nós não o escolhemos; ele vem a nós quando nos desarmamos.

Perdão peço, porque em meio a descrição de tua enorme agonia, não pude evitar que a figura de Edir Macedo viesse a minha mente, quando li a expressão largamente usada e abusada no meio fundamentalista ― “Demônios da Insônia”, na página 95. Na ocasião lembrei-me de um texto por mim postado em junho de 2010 na C.P.F.G.: “Sobre Nossos Demônios Interiores”, de onde, para avivar a memória, retiro esse pequeno trecho:

“É nesse grande palco mental que o apóstolo Paulo denominou de “lugares celestiais”, que se trava a imaginária luta entre as forças divinas e diabólicas” — que rendeu 120 comentários. Dentre eles, ressalto a tua irretocável réplica: “Sendo assim, conhecemos um pouco do caráter do sujeito através da imagem que ele nutre de seu deus”.(Marcio)

Na página 123, com o sub-título “Afinal o que Deus tem a Ver com Isso?” esboças uma reação (afinal, somos todos reativos). Continuando, fazes a seguinte afirmação (ou reação defensiva – Freud explica – rsrs): “Não acredito na existência de Deus! Acabou a minha fé em um Deus celeste.”

Considero que quando afirmamos “sou ateu” estamos defensivamente a nos referir àquela parte obscura e recalcada de nós que nos incita a anular uma provocação, talvez vinda do inconsciente. Quando a provocação vem, seja de fora (de outro) ou interna, o sujeito ativa o mecanismo de negação. Quando a cobrança ou ameaça vem da esfera do inconsciente, o indivíduo passa a guerrear contra si mesmo. Freud, certa vez, disse que estamos fadados a perder no conflito com o Superego. O equilíbrio reside em fazer as pazes com essa imago-paterna-ameaçadora, tornando-a menos importunadora, nunca tentando desafiá-la ou destruí-la

Sabemos que o que mais caracteriza o homem é a sua contradição ou ambivalência, como tentei passar no último ensaio do meu blog “Ensaios&Prosas”, que tem por título: “Homem, Teu Nome é Paradoxo!”. Do qual replico seu epílogo:

"Quem livrará o nosso EU, do peso da Contradição?” Quem atentar para essa brilhante enunciação da dúbia alma humana realizada pelo apóstolo fundador do cristianismo, verá que ela está em perfeita consonância com o sujeito da psicanálise, que às avessas do jargão cartesiano 'penso, logo existo', abarca o Homem Paradoxal com esta emblemática frase:'Penso onde não sou; sou onde não penso'.”

Olha lá o que colhi da paradoxalidade dos nossos afetos (advinda do polo que, devido certas circunstâncias, consideramos negativo) que a tua veia poética traduziu em forma de uma extraordinária prece:
“Meus Deus, como faz bem para minha alma tão sofrida e angustiada, ficar neste momento… ...olhando a tranquilidade, serenidade e paz do meu filho dormindo.” (Márcio — 45 dias de Pânico — página 130)

Jung, já bem avançado de idade, fez uma declaração autobiográfica que considero emblemática para o nosso tempo tão des-humano: “Não posso me referir aos meus relacionamentos mais íntimos que me voltam à mente como lembranças longínquas, pois constituem não somente minha vida mais profunda como também a dos meus amigos.” (“Memórias, Sonhos, Reflexões” — Carl G. Jung — página 21)

No capítulo “Antes de Tudo Religião” (página 183), Márcio, meu caro confrade, fazes aflorar uma profusão de lembranças que,creio eu, tem ainda hoje o condão de te impulsionar a escrever, escrever e escrever sempre… sobre teu ser em si, como mostra tão bem o parágrafo abaixo:

“A religião foi durante grande parte de minha vida, meu chão, meu norte, minha bússola… A pior coisa que me aconteceu na vida foi ter-me tornado 'ateu'. […] Eu queria transformar o outro (crente) em ateu, justamente porque o 'outro' era meu espelho que refletia o que já fui e ainda o que está bem vivo dentro de mim.”

Lendo o teu instigante livro, de modo reflexivo, não consegui nas entrelinhas, identificar em ti a ausência desse tal ‘sentimento sublime!” que grupos religiosos banalizaram para interesses mercadológicos. Como escrevi em um artigo nos idos de 2011 a um amigo da blogosfera:

"embora uma pessoa rejeite toda a crença, dogma e ilusão religiosa, não significa que ela tenha anulado o sentimento nobre de re-ligar-se a um éden utópico”.

P.S.:

Mas voltando ao título do teu livro. Usando o simbolismo judaico-cristão do número 40, e à guisa de encaixá-lo dentro de uma metáfora bíblica, penso que não seria tão danoso subtrair cinco dias de tua agonia para denominá-lo de: “40 dias no Vale da Sombra da Morte” ― tema que faria o Eduardo, o Esdras e o J. Lima se esbaldarem em comentários psico-teológicos, como fazíamos naquele saudoso e idílico tempo da C.P.F.G. (rsrs)

Abçs,

Levi B. Santos

Guarabira, 02 de novembro de 2016

link de onde é possível comprar o livro "45 DIAS DE PÂNICO TOTAL!" impresso pela Editora: http://www.agbook.com.br/book/219640--45_Dias_de_Panico_Total


Comentários

Eduardo Medeiros disse…
Confrade Levi, gostei do formato saudosista de "carta" que você utilizou para comentar o instigante livro do nosso confrade Márcio. Ainda não o li mas certamente lerei; até lá, vou pescando umas partes aqui e ali que o próprio Márcio tem postado do Facebook, e agora, essa tua "resenha informal" do livro que está excelente como não poderia deixar de ser.

Eu e o Rodrigo estamos tentando oxigenar outra vez a nossa Confraria. Já mudei a cara dela, deixei-a mais leve, visualmente melhor, creio. Tomei a liberdade de formatar o teu texto dentro de um padrão que queremos seguir de agora em diante.

E vamos refletir sobre esse tal de "vale da sombra da morte"...
Caro LEVI,

Fico feliz em poder ler seus textos novamente nesta confraria.

Pelo relato que fez acerca do livro do nosso nobre confrade Márcio Alves, sinto-me mais ainda atraído para adquirir sua preciosa obra e degustar aos poucos essa leitura já que sou bem lento para digerir uma obra literária.

Um forte abraço e volte sempre a esse espaço.
Marcio Alves disse…
Duzinho, primeiramente ficou muito bom o layout do "novo" blog. Segundo, quero tua resenha critica também, ainda que seja "informal" como do nosso amigo e mestre Levi. Terceiro, tentarei ser mais ativo. E quarto, não vejo a hora de vc também me dar o seu feedback rss
Marcio Alves disse…
Rodrigão não é bem literatura, pois foi escrito literalmente com meu próprio "sangue", ou seja, é uma autobiografia com teor filosófico e psicológico, uma vez que discuto numa autoanálise os processos que me levaram aos "45 dias de pânico total!" ou, aos "40 dias no vale da sombra e da morte" (vide mestre levi rss), bem como discuto tratamento psicofarmaco e psicoterapeutico dos transtornos mentais, mais especificamente do Transtorno de Pânico, Transtorno de Ansiedade Generalizada e Depressão. ah e também quero o seu feedback do meu livro. abraços
Levi B. Santos disse…
O novo layout, Eduardo, parece que tem tudo a ver com o texto inaugural que gira em torno do Vale da Sombra da Morte (rsrs). Na imagem, o ser(ou anjo) desengaiolado que se prepara para pular na escuridão do espaço sideral, talvez tenha que aterrisar no Vale Medonho ou tenebroso (metáfora de sofrimento psíquico) que o salmista Davi, num momento de audácia, disse que não temeria mal algum se por lá passasse.

Mas como o ideal-desejante está muito distante da realidade existencial,quem se arriscaria?

Nos tempos bíblicos, Márcio, os termos técnicos para os quadros sintomáticos de Trastorno de Pânico, ansiedade e depressão que hoje usamos eram todos englobados na palavra "Sombra".
No "Vale da Morte" residiria o que hoje, cientificamente denominamos Pulsões de Vida e de Morte - que na simbologia religiosa se entende como "forças antagônicas divinais/demoníacas.

Sem o tecnicismo científico a COISA era tão mais poética, apesar de trágica.

O nosso grande poeta, Olavo Bilac reverberou isso no trecho que aqui replico de um de seus fenomenais versos:

"E no perpétuo ideal que te devora,
Residem juntamente no teu peito
Um demônio que ruge e um deus que chora.




Eduardo Medeiros disse…
Marcio, assim que eu ler seu livro também farei meus comentários, de forma bem menos técnica que o Levi, certamente. Mas quem está ligando para tecnicidades....rss como disse Levi, nos tempos bíblicos tudo era dito de forma mais poética e trágica, mesmo porque, sem tragédia que é um dos polos inspiradores dos poetas, não há poesia.

Levi, tive essa mesma impressão ao escolher essa gravura para o novo cabeçalho do blog. É uma fuga de uma gaiola mas é um mergulho incerto, não há seguridade de um voo tranquilo e uma base sólida para se por os pés.
Mas o que acho interessante no Salmo 23 é que ali o poeta não se sente só e desamparado ao estar diante de sua sombra mortal. Vejam como a fé traz qualidade de vida para o ser humano!

Refletindo sobre a história bíblica de Israel, quando o povo deixa a gaiola do Egito e parte rumo à Terra Prometida a seus pais, eles se deparam com o abrasador deserto do Sinai, uma espécie de "vale da sombra da morte" onde faltaria água, alimento, segurança e descanso. Precisariam encontrar as pastagens primeiramente dentro de si mesmos, coisa que não lhes ocorreu naquela provação que acabou durando quarenta anos. Ou seja, foi praticamente a vida inteira de aprendizado.

Penso que o mergulho nas águas do desconhecido devem ter um rumo estabelecido, um norte. Deixamos a gaiola da vidinha medíocre para conquistarmos algo que de fato possa fazer algum sentido positivo em nossa existência. Existe o risco de nos perdermos e de nunca chegarmos ao ponto de destino. Porém, penso que ninguém deseja estagnar . Nossa natureza é nômade desde os tempos antigos e ansiamos por promover mudanças nas nossas vidas. Aí só não podemos é querer caminhar de volta para o Egito.