"Tenho dúvidas da relação entre as palavras de gênero neutro e a igualdade"
Em “Não Perca o Seu Latim”, Paulo Rónai conta a história do imperador
Sigismundo, que no Concílio de Constança se enganou no gênero de uma palavra e
ordenou que, dali em diante, a palavra passasse a ter aquele novo gênero.
Um monge considerou a ideia absurda e contestou, celebremente: “Caesar
non supra grammaticos”, que significa “o imperador não está acima dos
gramáticos”, ou seja, não manda na gramática.
Em princípio, o monge tem razão: ninguém manda na gramática, nem mesmo
um imperador. No entanto, o Liceu Franco-Brasileiro, do Rio de Janeiro,
resolveu tentar, e dirigiu-se aos estudantes com a saudação “querides alunes”,
por “respeito à diversidade e à inclusão”.
Eu sou daquelas pessoas que acreditam ser possível respeitar a
diversidade e a inclusão em português. Ao que parece, é uma crença absurda e
reacionária: a língua portuguesa só deixa de discriminar se as palavras
acabarem em “e”. Com exceção da palavra presidente, que já acaba em “e”, mas só
deixa de oprimir se passar a ser presidenta. Que azar.
A transformação do nosso idioma numa língua neutra coloca vários
problemas, e o menor deles talvez seja o ridículo. Mesmo forçando à
neutralidade adjetivos e substantivos, como “querides” e “alunes”, ainda assim
sobra a questão dos artigos, dos particípios passados, dos numerais, etc.
A frase, aliás bem bonita, “Es arquitetes foram agredides por bandides e
tiveram de ser operades por médiques”, talvez cumpra parte destas novas
aspirações linguísticas, mas na eventualidade de “es bandides” serem um par, e
de querermos designá-los através da antiga e profundamente discriminatória
formulação “dois bandidos”, teríamos de inventar também um numeral neutro, para
acrescentar ao masculino “dois” e ao feminino “duas”. Deis, talvez? Eram deis
bandides. Satisfeites?
A verdade é que tenho muitas dúvidas de que haja uma relação direta
entre o gênero neutro das palavras e a igualdade. Parece-me que as
desigualdades têm causas mais profundas. Por exemplo, na língua persa, falada
no Irã, Afeganistão e Tajiquistão, todas as palavras são de gênero neutro. Se
calhar, conheço mal as sociedades iraniana, afegã e tadjique, mas assim de
longe não me parecem muito igualitárias, diversas e inclusivas.
Ricardo Araújo Pereira
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