UM SALTO NO ESCURO

 

foto: deslizamento de terra em Nova Friburgo, 2011

TRAGÉDIAS SÃO COMPANHIAS da humanidade desde sempre. Das guerras de conquistas da antiguidade às atrocidades da Segunda Guerra, tragédias se sucedem democraticamente - todos os povos passam por elas. Atualmente temos várias tragédias acontecendo no mundo. Desde a destruição pela queimada em nosso Pantanal até a guerra entre Rússia e Ucrânia, passando pela destruição quase total que o exército de Israel está impondo à região de Gaza, insuflando a ira do mundo muçulmano colocando o Oriente Médio à beira de uma guerra total que afetaria todo o planeta. É a criança que nasce anencéfala e o idoso que morre de desgosto pela solidão em algum asilo esquecido pela família. 

O avião que caiu ontem em Vinhedo, Estado de São Paulo e que vitimou 62 pessoas foi uma tragédia. E a tragédia se torna mais trágica quando se coloca Deus na conversa. O avião caiu ao lado de uma casa sem trazer nenhum prejuízo aos moradores. Ouvi a dona da casa dizer que se assustou com o barulho e quando viu o que tinha acontecido, ficou aflita com o cenário de destruição. Deu graças a Deus pelo avião não ter caído em sua casa e que isso fora um "livramento divino". E foi? Deus livrou a casa dessa senhora e ao mesmo tempo não livrou da morte os passageiros do avião? Trazer Deus para o cotidiano do mundo dá muita munição aos ateus, afinal de contas, se Deus existe, se ele é capaz de salvar uns e deixar outros morrerem, sofrerem, passar por aflições alucinantes e dores destrutivas, que espécie de caráter tem esse Deus?

Não quero me aprofundar em discussões filosóficas ou teológicas e nem quero ofender a fé de ninguém, nem alimentar o ateísmo de outras. Eu fui um cristão protestante durante anos e a questão do mal no mundo sempre foi uma pedra no meu sapato. As respostas dadas por teólogos não me bastavam. Todas pareciam livrar Deus de qualquer culpa e deixar nas costas humanas a responsabilidade pelas próprias tragédias, sem falar na atuação do Diabo na história. Mas se assim for, porque ainda acreditar que Deus interfere em nossa realidade para curar a doença do João e não para curar a doença de Maria? É uma escolha que ele faz? Porque então ele não interfere de modo a livrar o mundo de toda tragédia já que teoricamente ele pode fazer isso?

Dizem que para os filósofos, a grande questão da filosofia é a morte, em todos os sentidos que a palavra "morte" possa ter. Certamente, a grande questão teológica é porque Deus não faz o bem para todos já que se crê ser ele  amor? Por que uma pessoa justa sofre e uma pessoa ruim se dá bem na vida?  Talvez o único livro da Bíblia que trate especificamente dessa questão seja o livro de Jó. Se nunca o leu, leia, você vai se surpreender com a construção filosófica-existencial desse livro, profundamente humano. É o livro de quem ergue os olhos para os céus e pergunta a Deus: "Por quê? A resposta não satisfará a todos e continuar crendo na bondade divina será sempre um exercício de fé que não busca razão nem coerência e será sempre como dizia um velho teólogo, "um salto no escuro".

Comentários

Ótima reflexão. Mas se pensarmos bem, como vamos conhecer o que é bom sem a ausência do que é bom? A existência da Luz, segundo o próprio relato bíblico, foi precedida pelas trevas... No entanto, as tragédias ocorrem e muitas das vezes pela nossa própria causa considerando a nossa capacidade atual de prever os acontecimentos ruins e nos adaptarmos a eles ou evitarmos que ocorram. As enchentes e deslizamentos de terra não poderiam estar sendo evitadas pelo homem ao optar por construir em ligares mais seguros, oferecer políticas públicas habitacionais corretas e eficientes bem como evitando o aquecimento global?!
Compreendo o quanto é infantil envolver diretamente Deus em nossos acontecimentos. Mas o religioso muitas das vezes acredita que a vida dele tenha um certo propósito divino e torna a Divindade participante do seu cotidiano. Se, por alguns metros escapou da tragédia, foi um livramento dos céus, mas se era seu pai, sua mãe, seu filho ou cônjuge no avião, então "por que, Deus?". Não sabemos como lidar com essas situações até hoje e acho que o nosso emocional nunca vai estar preparado. Até quem hoje está "firme na Rocha".
Eduardo Medeiros disse…
exatamente, Rodrigo. O religioso agradece a Deus o mal que não lhe veio mas que vitimou tantos outros. Qual o sentido disso? Será que ele se sente tão especial assim para que Deus cuide pessoalmente dele?