Natal de Esperança – Rio de Janeiro, 1985



O calor de dezembro envolvia o bairro de Copacabana. A janela da sala estava aberta, e o vento carregava os sons do trânsito, das buzinas e das vozes da rua. A pequena sala, decorada com uma árvore improvisada feita de galhos de pinheiro do Mercado de São Cristóvão, cheirava a rabanada e café recém-passado.

Sentados ao redor da mesa, estavam Dona Helena, matriarca de sessenta anos, vestida com uma blusa de tricô verde, Paulo, seu filho de vinte e dois, estudante de jornalismo, e Cláudia, a filha de dezoito, que estudava no Colégio Pedro II e adorava música internacional.

— Olha essa rabanada, mãe — disse Cláudia, colocando uma fatia no prato. — Tá perfeita. Esse Natal parece mais… leve, sabe? Depois de tudo que passou este ano.

Dona Helena sorriu, mexendo o café.

— Leve? Eu diria que é um alívio, minha filha. Finalmente, não tem mais aqueles generais olhando cada palavra que a gente fala. Mas ainda é cedo para dizer que tudo mudou.

Paulo interrompeu, segurando o jornal O Globo:

— Vocês viram essa coluna sobre a inflação? Diz que a alta de preços só vai piorar até o próximo governo ajustar as contas. Esse Sarney vai ter muito trabalho.

— E o Tancredo… — disse Cláudia, sentando-se ao lado do irmão — Sempre que penso nele, sinto esperança. Mas você viu que ele nem chegou a assumir o cargo? É estranho comemorar a democracia assim, com tanta coisa ainda no ar.

— Democracia é isso mesmo — respondeu Dona Helena, pousando a colher. — A gente comemora cada vitória, mesmo que incompleta. E esse Natal, para mim, é isso: esperança.

Paulo riu, lembrando-se de algo que tinha ouvido no rádio.

— Alguém aí assistiu ao Cassino do Chacrinha ontem? O Chacrinha está mais engraçado do que nunca. E parece que a Cláudia anda ouvindo só Madonna e Eurythmics… — ele brincou, piscando para a irmã.

Cláudia fez cara de indignada.

— É música do mundo, Paulo! Mas você pode ouvir o Raul Seixas ou o Legião Urbana, se quiser. Aliás, vocês ouviram que o novo disco do Barão Vermelho vai lançar em janeiro?

Dona Helena balançou a cabeça, rindo.

— Ah, esses jovens… Mas mudando de assunto, vocês viram que o Flamengo ganhou de novo? Parece que 1985 foi o ano deles. Imaginem só, um Natal com todo mundo falando de futebol e ainda sonhando com estabilidade.

Paulo folheou o jornal novamente e comentou:

— É, futebol e música salvam o espírito, mas nas ruas do Rio, ainda tem tensão política. Vi uma discussão no bar de Ipanema: um grupo apoiava Sarney, outro falava mal do governo e lembrava do período militar. Parece que a cidade está dividida.

Cláudia franzia a testa:

— Eu sei… No colégio, tem gente que acha que tudo vai melhorar rápido, e outros que acham que nada vai mudar. Eu fico com um meio-termo: a gente tem liberdade agora, e isso já é enorme.

Dona Helena suspirou, olhando pela janela para os prédios iluminados.

— Lembram de 64? Quem diria que chegaríamos a este Natal… sem medo de falar o que pensamos, mesmo que às vezes a gente discorde uns dos outros. Isso é liberdade. E é por isso que cada abraço, cada mesa cheia, tem valor.

Paulo ergueu o copo de suco de laranja.

— Um brinde, então. Aos novos tempos, às nossas discussões, às músicas, novelas e notícias que vão nos acompanhar. E que o ano que vem traga mais democracia, mais justiça e menos inflação!

— Amém — disse Cláudia, sorrindo. — E que o Brasil aprenda a lidar com tanta liberdade de uma vez por todas.

O sino do vizinho soou ao longe. O Rio parecia pulsar com uma mistura de alegria e cautela. Nas ruas, alguns carros buzinavam, crianças corriam com sacolas de presentes, e a cidade se preparava para a noite.

Dona Helena olhou para os filhos, sentindo que aquele Natal tinha algo de especial. Era mais que rabanadas e presentes; era um Natal de esperança, o primeiro de uma nova era, e cada família, cada conversa, cada divergência política fazia parte daquele tempo histórico.

O rádio tocava “We Are the World”, e a voz de Michael Jackson parecia conversar com a própria cidade: cheia de esperança, cheia de desafios, cheia de futuros possíveis.

E assim, naquele 25 de dezembro de 1985, uma família no Rio de Janeiro celebrava o Natal com amor, discussão e a liberdade recém-conquistada, sabendo que o país começava a escrever uma nova história.


📷: Dan Lundberg/Flickr https://www.flickr.com/photos/9508280@N07/17103928971

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