Crônica Para Um Finado

Por Levi. B. Santos


As Exéquias do Excêntrico Bioanalista   



O laboratório era a sua segunda casa. A bem dizer, quase todos habitantes da pequenina cidade já tinham passado por suas mãos. Respeitavam-no, pois era a ele a quem recorriam; a quem entregavam seu sangue, seus excrementos sólidos e líquidos para ser examinados minuciosamente.

Na tarde cinzenta e fria de seu sepultamento ninguém ousou dizer uma palavra sequer. O sacerdote esperava que alguém se pronunciasse, antes do féretro descer à cova, mas nenhum tomou essa iniciativa. Aliás, nada podiam fazer, pois estavam perplexos, como que atacados por uma sisudez mórbida, como se uma aura paralisante tivesse caído abruptamente sobre seus nervos e músculos. Uma mistura de perplexidade e tristeza transparecia em todos os olhares.

O silêncio que reinou minutos antes do corpo do cientista descer à sepultura, talvez fosse resultado do clima de extrema religiosidade da população a colidir com a personalidade paradoxal do douto senhor. Talvez, os seus defeitos estivessem a anular as suas virtudes, impedindo os discursos fúnebres, que geralmente se nutrem do lado “bom” do sujeito. O certo é que um clima de temor caiu sobre os que estavam ao pé de sua última morada. Uns temiam que surgisse algum antipático a falar, ali, sobre as fraquezas e as excentricidades do defunto; outros receavam que as palavras de elogios ao morto, pudessem desaguar em um sonoro “não é verdade!”.

Não é que uma das garotas ali presente balbuciava ao ouvido da outra! É que o falecido tinha encontrado tantas variedades de vermes em suas fezes que, ao apresentar-lhe o resultado, chamou-a humoradamente de “verminosa” ― termo compreendido pela examinada como um xingamento.

Enfim, o doutor era o paradoxo em pessoa ― o que não é novidade nenhuma, pois é exatamente a contradição que caracteriza o humano. Por vezes, pessoas que compareciam a seu laboratório para lhe fazer perguntas sobre resultados de exames, recebiam como resposta, o silêncio, ou, quando muito, o lembrete: “Não abra o envelope, seu médico é quem vai informar o que você tem. Denotando todo o seu ser paradoxal, às vezes, quando inquirido insistentemente sobre o que tinha dado nos exames, disparava: Huuuuumm! Parece uma infecção aguda”.

Não encontrando fórmulas para dizer a verdade em toda sua plenitude sobre a vida do velho analista, naquele cair de tarde, a maneira melhor, mais simples e sincera que encontraram, foi não emitir opiniões sobre ele. Na falta de expressões que abarcassem toda a verdade sobre o falecido, resolveram aproveitar o silêncio ou o vazio de palavras do momento para recordar fatos pitorescos e engraçados da vida do doutor ― homem que conhecia muito bem o que estava oculto no sangue e nos excrementos de todos que o acompanhavam em sua última caminhada.

As últimas palavras do sacerdote confirmaram o que preconizam os filósofos e estudiosos da alma humana: “Não existe olhar neutro ― ele está sempre carregado de subjetividades nas relações que construímos uns com os outros”.

O enunciado bíblico “... e as suas obras os sigam” recitado pelo pároco no final do ritual fúnebre ―, mudara instantaneamente o ar dos velhos amigos de infância do analista a caminho de sua última morada. A estranheza denunciada pelos olhos deles, talvez se devesse a palavra “obra”. Este termo parece ter sido a senha para que viessem à tona fatos longínquos de suas vidas. É de se pensar que chegaram às suas mentes, lembranças reprimidas do tempo em que depositavam as latinhas com os dejetos de seus filhos e netos sobre o balcão de madeira do velho laboratório a fim de serem examinados. “Eu vim trazer a obra de meu menino para o senhor examinar”  era assim que os ex-colegas de infância, com o olhar cabisbaixo e carregado de vergonha, se dirigiam ao homem sisudo, de avental branco, que vivia sempre cercado de tubos de ensaios com um antiquado microscópio bem ao centro de uma grande mesa de madeira de lei, cheirando a clorofórmio. 

Depois do enterro de um ente querido, comumente, há sempre pessoas que têm o dom de contagiar o ambiente com suas traquinices, como que para quebrar a monotonia de fundo melancólico instaurada em ocasiões como essa. Descendo a ladeira do cemitério, rumo a suas casas, riram muito a respeito do paralelismo lingüístico entre “fezes” e “obras”(*). Até confidenciaram entre si que o falecido poderia (por que não?) ter sua função re-exercida na eternidade.


(*) Há na simbologia mítica uma relação intrínseca entre os significantes “fezes” e “obras”. No Dicionário Psicanalítico de Símbolos, as fezes representam a primeira manifestação criativa e concreta do poder individual; na Alquimia esses excrementos são considerados a matéria prima que acaba se transformando em ouro.



Guarabira, 30 de outubro de 2013


Comentários

Levi B. Santos disse…
2 de Novembro se aproxima ― dia em que muitos visitam os túmulos de entes queridos que se foram.

No mundo virtual bem que poderia haver um dia de Finado. Entre outras finalidades, esse dia poderia servir para que antigos blogueiros visitassem seus blogues (túmulos), que num passado não tão longínquo, fizeram parte de suas vidas.

Mas desculpem-me: este meu fúnebre comentário está parecendo mais a “Hora do Apêlo” dos cultos pentecostais de domingo à noite (rsrsrs)
Caro Levi,

Como vai?

Parabéns pela crônica.

Justamente para não criar "blogues-túmulos", refleti muito antes de criar uma segunda página na internet quando resolvi abrir um espaço para debates questões específicas aqui do meu município. Então, quando concluí que, se tratasse dos mesmos assuntos no meu blogue pessoal, estes se tornariam impertinentes para o público que lá havia, surgiu em maio do corrente ano o Propostas para uma Mangaratiba melhor. No começo, foram muitas postagens, um descarrego de ideias e sugestões para a cidade que estavam represadas na minha mente. Agora, porém, prossigo num ritmo mais lento, mas as postagens no meu blogue pessoal seguem a pleno vapor com estudos bíblicos sequenciais entre uma e outra coisas sobre política.

Abraços.
Levi B. Santos disse…
Na realidade, caro Rodrigo, os blogs estão em baixa. Eles, cada vez mais, vêm perdendo terreno para os irresistíveis facebook e twitter.

Vivemos em um mundo extremamente corrido, onde tudo deve ser resolvido no menor espaço de tempo.

Daí, vem o sucesso e o crescimento vertiginoso dessas comunidades, cujos recados e textos, para serem digeridos rápidos, não devem ultrapassar os 140 caracteres.(rsrs)

É dificil nadar contra a maré dos fast-foods cibernéticos que enchem nossos estômagos, sem que percebamos o que estamos a engolir.

Os textos postados nos blogs, geralmente são frutos de um estudo mais apurado, e, como tudo que requer reflexão, naturalmente atrapalha o corre-corre a que gentilmente nos submetemos.

Concorda amigo?
Eduardo Medeiros disse…
Uma ótima crônica para o dia que se aproxima! O dia que para alguns, é reservado para lembrar dos que se foram; é o dia mais esperado pelos floristas!

A tradição evangélica não tem tal costume, não é mesmo Levi? Acender velas para os mortos é coisa estranha para os "Bíblias", como eram apelidados os evangélicos quando eu era criança.

Mas um funeral é uma ótima metáfora da própria vida. Momento propício à saudade e à reflexão.
Eduardo Medeiros disse…
Sobre blogues e Face...

O Face é uma maldição completa!! rsss viciante devido à resposta quase imediata das conversas; possibilidade de ter ao alcance de um clique, muitos amigos e muito mais de "conhecidos".
Tenho saudade daqueles bons tempos em que os bloques bombavam. Eu que já fui um ávido leitor de bloques, hoje estou com uma preguiça danada até de sentar, ler, e escrever um texto com um pouco mais de profundidade para publicar aqui que muitas vezes o Face não suporta.
Mas tenho buscado limitar o meu tempo no Face.
Até mesmo o meu "Veredas" anda devagar quase parando.
Desisti até mesmo de ficar no pé do pessoal que escreve(ou escrevia) por aqui, alertando a hora deles postarem; por isso, acabei (autoritariamente rs) com a lista de postagem.
quem quiser postar, poste!

Não sei se o pessoal gostava mais de postar lá no Logos & Mithos; se os assuntos bíblicos e teológicos davam mais IBOPE.
Creio, amado mestre, que a junção das duas partes não deu muito certo...rss
Levi B. Santos disse…
Você, Eduardo, matou a charada, ao falar em seu segundo comentário sobre a ... junção de duas partes que não deu certo .

A metáfora que envolve o defunto da história que postei, fala exatamente da dificuldade em juntar os dois pólos da paradoxalidade humana:

Uns temiam que surgisse algum antipático a falar, ali, sobre as fraquezas e as excentricidades do defunto; outros receavam que as palavras de elogios ao morto, pudessem desaguar em um sonoro “não é verdade!”. ― diz, o trecho mais emblemático da crônica.

Não houve discursos fúnebres, por que os “amigos” temeram juntar o lado excêntrico do finado bioanalista à sua parte oposta, que eles tinham como benéfica.

Eu frisei bem o trocadilho (junção) entre os significantes fezes e obras , para mostrar que essa tão sonhada síntese do nosso lado "bom com o nosso lado "ruim" só vai dar certo no plano simbólico, como está bem explicito na nota de rodapé (sinalizada com arterisco)

O silêncio, tanto lá no cemitério, como cá no blog da C.P.F.G.,(que já foi famoso e festivo), tem assim a sua razão de ser. (rsrs)

Então, conformemo-nos (kkkkkk)
O fato, Levi, é que esses ambientes das redes sociais no estilo feissebuque (escrevendo numa forma mais aportuguesada) não são propícios para uma reflexão e construção elaborativa das coisas. São ótimos para a divulgação resumida de algumas ideias, dos textos publicados aqui e para os contatos em tempo real. Mas vale citar aqui os versos de um morador da minha Mangaratiba nos comentários de resposta feitos em seu respectivo blogue:

"Não deixe o blog morrer,
Não deixe o blog acabar...
Um blog é pra gente bamba,
O feisse é aquele molambo."
(http://muriqui-lacerda.blogspot.com.br/2013/07/jornada-mundial-da-juventude.html)

O corre-corre eu diria que atrapalha mais no sentido de contaminar a maneira passiva de agir das pessoas diante dos impulsos do nosso tempo. Pois, se somos firmes na construção de um propósito (o meu é buscar o Reino de Deus e a sua justiça), então não nos desviamos com certas "distrações" modernas que não levam a nada. Aliás, o Face é uma tremenda armadilha porque também tenta substituir o contato pessoal com os amigos por algo virtual, fazendo com que pessoas percam o convívio humano. Uma espécie de morte para o que acontece no mundo real mesmo estando ainda vivo...
Caro Edu,

Essa aversão dos evangélicos ao feriado de finados é mais aqui no Brasil. Nos Estados Unidos, p. ex., os protestantes das igrejas mais tradicionais não têm essa neura. É normal as pessoas depositarem flores nos túmulos de seus familiares e amigos mortos.

Quanto a este blogue, fico a indagar se o desinteresse dos nossos escritores se deu por uma questão específica ou se hoje assistimos ao fenômeno da "desblogação" da internet, inventando assim mais uma palavra para o nosso ainda vivo idioma português. (rsrsrs)

Sugiro que não desistamos! As pessoas haverão de se cansar do Feissebuque e os blogues tornarão a ser a alternativa para uma minoria amante das letras continuar trocando ideias entre si. Afinal, não vejo como a internet caminhar no sentido de tornar o contato virtual mais próximo do real. Veja que as ligações telefônicas de celulares com a exibição de imagens não tem crescido como a indústria esperava. As pessoas preferem telefonar umas para as outras sem se expor tanto e o mesmo eu vejo em relação às redes sociais. Não demorará muito, vai ter gente deixando de lado suas contas no Face e preferindo sentar confortavelmente na poltrona de suas casas lendo um livro. E, na blogosfera, ainda é possível degustar um bom artigo gratuitamente...
Levi B. Santos disse…
“...os blogues tornarão a ser a alternativa para uma minoria amante das letras continuar trocando ideias entre si” ( Rodrigo)


Que os deuses te dêem ouvidos, Rodrigo (rsrs)

Na verdade, eu usei propositadamente a profissão do defunto (Bio-analista) como metáfora ― para simbolizar a C.P.F.G. (antigo laboratório onde dissecávamos idéias e análises de nossas vidas e da vida dos outros)

Meses atrás violaram o nosso túmulo: deletaram o cabeçalho genial feito pelo fundador do blog ― Isaias Medeiros. Espero que não deletem a riqueza que está guardada dentro desse túmulo, representada por memoráveis textos e comentários, dignos de serem eternizados em um livro.

Que respeitem o epitáfio: Neste solo jazem os paradoxais lados humanos (o lado “luz” e o lado obscuro) de uma confraria que um dia resolveu desnudar suas almas. (rsrs)
Levi B. Santos disse…
A Valéria, que é seguidora desse blog, deu um sonoro Amém (rsrs)

Para acompanhar sua exclamação - amém! - nessa noite de flores e velas, nada melhor que ouvir na voz da saudosa Elis Regina - Acender as Velas

Acender as velas
Já é profissão
Quando não tem samba
Tem desilusão...
(rsrs)
Estou ausente mas não necessita acender velas. Eu ressuscitarei e não serei primaz.
Levi B. Santos disse…
Miranda, você chegou depois do amém.

Já que falou em “primaz”:

O Primaz, Eduardo Medeiros de Jesus, disse que sua experiência de
juntar o ”profano” (a CPFG) com o ”sagrado” (a Confraria Logos e Mythos) não deu muito certo. (rsrs)

Mas o profano e o sagrado que os “deuses” separaram, um dia poderão se juntar. Ou não?

Nos meus tempos de igrejeiro eu ouvia muito esse bordão:

“...Nos últimos dias derramarei do meu espírito sobre toda a carne” (rsrs)
Eduardo Medeiros disse…
Pois é...

Levi, eu já tinha percebido a riqueza simbólica da sua instigante crônica. Pretendia voltar ainda para dessecá-la melhor rsss

Este final de semana eu fiquei quase totalmente ausente do mundo virtual. Estou tentando limitar o meu tempo navegando no Face. Tirando nosso grupo da L&M, pouco coisa se aproveita nele...rsss

Neste solo jazem os paradoxais lados humanos (o lado “luz” e o lado obscuro) de uma confraria que um dia resolveu desnudar suas almas.

Poxa Levi, fiquei até emocionado com tal epitáfio rsss
Foi eu quem profanei o túmulo ao arrancar o belo e significativo cabeçalho que o Isa tinha feito. Minha intenção era boa...(mas o inferno tá cheio delas, como dizem, né? rss).
Queria eu dar uma "sacudida" na Confraria, mudar seus ares, juntar o "profano e o sagrado", mas não surtiu muito efeito.
E agora cá estou, como profanador de túmulo...kkkkkkkkkkk
Mariani Lima disse…
Acho que em algum momento profetizei sobre isso em um comentário, sobre essa afastamento que aconteceria naturalmente. Eu morro de saudade dos blogues e falei com a Anja essa semana que deveríamos criar um selo de blogs unidos e fazer uma divulgação dos blogues conjuntos e individuais para uma possível retomada. Li esses dias que as curtidas no face tem um apelo psicológico forte,somos imediatamente recompensados e ficamos então por ali, postando e ouvindo a campainha da recompensa rsrs...penso que se desejamos ressuscitar o morto, precisamos não só escrever mas interagir, comentando, retomando a rede que um dia tivemos.

Um grande abraço Levi.

Levi B. Santos disse…
Pois é, Eduardo de Jesus

Nunca passou por minha cabeça, que fosse você o violador do túmulo da CPFG (rsrs).

Surpreendeu-me. Logo o primaz? ― termo cunhado por Mirandinha em sua micro-aparição.

Você feriu de morte o blog da “confraria adormecida”, ao arrancar o seu cabeçalho. E não satisfeito, trocou o banner que seu primo Isaias esmeradamente construiu, por uma uma faixa preta de LUTO. (rsrs)

Mas nada que não tenha perdão. A pastora Guiomar intercederá por você, implorando à Javé que apague este grave pecado cometido.

Está escrito no livro de Provérbios:

Aquele que confessa os seus pecados alcança misericórdia (rsrs)
Levi B. Santos disse…
Aqui agora tem de tudo:

Eu citando versículos bíblicos para juntar a manada. O cético Miranda, crítico da religião dizendo que vai ressuscitar. O Primaz Eduardo se reconciliando. A grande poetisa, Mariani, dizendo que profetizou.

O Eduardo, parece que vai dizer que tudo gira em torno da religião, e a solução é reativar o blog da “Confraria Teológica Logos e Mythos”. (kkkkkkkkk)
Eduardo Medeiros disse…
É, Levi, confesso. A intenção era boa, mas agora acho que pisei feio na bola!!! o que se há de fazer? Agora Inês é morta...rss

Vou ver se consigo recuperar o cabeçalho antigo, creio que o guardei em algum lugar.

Realmente os comentários estão interessante, Levi. De repente baixou um "espírito profético" por aqui.