Uma Páscoa pra lá de inovadora



"Chegou o dia da Festa dos Pães Asmos, em que importava comemorar [sacrificar] a Páscoa. Jesus, pois, enviou Pedro e João, dizendo: Ide preparar-nos a Páscoa para que a comamos. Eles lhes perguntaram: Onde queres que a preparemos? Então, lhes explicou Jesus: Ao entrardes na cidade, encontrareis um homem com um cântaro de água; segui-o até à casa em que ele entrar e dizei ao dono da casa: O Mestre manda perguntar-te: Onde é o aposento no qual hei de comer a Páscoa com os meus discípulos? Ele vos mostrará um espaçoso cenáculo mobilado; ali fazei os preparativos. E, indo, tudo encontraram como Jesus lhes dissera e prepararam a Páscoa. Chegada a hora, pôs-se Jesus à mesa, e com ele os apóstolos. E disse-lhes: Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes do meu sofrimento. Pois vos digo que nunca mais a comerei, até que ela se cumpra no reino de Deus. E, tomando um cálice, havendo dado graças, disse: Recebei e reparti entre vós; pois vos digo que, de agora em diante, não mais beberei do fruto da videira, até que venha o reino de Deus." (Evangelho de Lucas, capítulo 22, versículos de 7 a 18; versão e tradução ARA)

Tradicionalmente a cristandade possui o hábito de fazer uma leitura da última Páscoa de Jesus e da Santa Ceia a partir de um ponto de vista, digamos, mais sacramental. Concebemos esse lindo episódio como uma ordenança do nosso Senhor e que devemos repetir continuamente em sua memória, tendo por objetivo anunciar o Reino de Deus em sua plenitude (verso 18), o que coincide com a ideia sobre a segunda vinda de Cristo (conf. 1ªCo 11:26).

De fato, a celebração da Ceia corresponde a tudo isso. Porém, antes de mais nada, nunca podemos ignorar que ela foi e será sempre uma expressão da comunhão. Algo vivido espontaneamente por Jesus e seus discípulos ao redor de uma mesa, num ambiente de profunda e autêntica intimidade fraterna.

O dia da Festa dos Pães Asmos acontecia quando os judeus, segundo o calendário bíblico-religioso, sacrificavam o cordeiro pascal (Nm 28:16-25). Tratava-se de uma refeição que deveria ser comida por grupos de famílias israelitas exclusivamente no Templo (Dt 16:5-8), tal como teria sido a comemoração ocorrida durante o reinado de Josias (2Cr 35:1-19).

Jesus, no entanto, prefere desafiar os costumes e não ir ao Templo desta vez como havia feito nos dias anteriores para ensinar lá o povo (Lc 21:37-38). Antes, o Mestre enviou Pedro e João para que estes preparassem a Páscoa num local ainda desconhecido pelos demais discípulos em que o Senhor parece ter contratado secretamente com o proprietário do imóvel. Quando entrassem em Jerusalém, os dois apóstolos deveriam procurar por um homem portando um cântaro de água, algo incomum naqueles dias porque tais objetos costumavam ser carregados mais pelas mulheres (os homens transportavam água em odres de pele). Logo, tratava-se de um evidente código de comunicação.

Ao que me parece, Jesus deveria saber que estava sendo traído e resolveu tomar as providências necessárias para que a sua prisão não ocorresse antes daquele importante momento. Se os demais seguidores conhecessem previamente onde seria a Ceia, Judas poderia muito bem aparecer no local acompanhado da guarda do Templo e o Senhor seria prematuramente preso. Só que o Salvador pretendia se entregar voluntariamente em um outro lugar e na hora que ele entendia ser oportuna.

A última Páscoa de Jesus foi de fato uma ocasião pela qual o Senhor aguardou ansiosamente antes de sofrer o martírio na cruz. Os versos 15 e 16 acima citados expressam o seu desejo intenso por estabelecer uma relação de comunhão com os seus discípulos. Algo que o ambiente hipócrita dos templos, muitas vezes impregnados de uma religiosidade fingida, jamais seria capaz de proporcionar. Ficar repetindo uma tradição vazia era uma rotina que não mais interessava ao Mestre. Neste sentido, vale a pena citar os pertinentes comentários do teólogo italiano Sandro Gallazzi feitos em seu livro e estudo sobre o 1º Evangelho:

"No templo, o centro é o altar. Imenso, visível: uma base de 10 metros, uma altura de 6 metros, o fogo dos sacrifícios sempre aceso. Os cordeiros eram distribuídos ao povo depois de ter sido degolados e depois de os sacerdotes ter recolhido o sangue e feito as prescritas aspersões rituais (2Cr 35,11). A páscoa, comida por todos, era precedida pelos holocaustos imolados no altar do templo. O altar que nos subjuga a Deus e a seus sacerdotes, é substituído pela mesa que nos faz iguais e irmãos (...) A imagem de uma multidão de gente de pé, ao redor de um altar fumegante, encharcado do sangue de milhares de cordeiros, é totalmente diferente de um grupo de amigos reclinados ao redor de uma mesa para condividir um prato de comida." (O Evangelho de Mateus - uma leitura a partir dos pequeninosComentário Bíblico Latinoamericano. São Paulo: Fonte Editorial, 2012, pág. 526)

Refletindo acerca do versículo 17 da passagem bíblica que citei, encontro no Evangelho uma mensagem que vai bem além do simples ritual. A ordenança de receber e de repartir precisa tornar-se extensiva quanto à vida comunitária dentro da Igreja. Os discípulos deveriam partilhar tudo o quanto tinham afim de satisfazerem as necessidades dos seus irmãos. Quer fossem bens materiais, ensinamentos ou dons espirituais. O cálice do vinho tinto, um momento de alegria festiva dos judeus, deve nos levar a uma ação inclusiva de modo que a Igreja não pode deixar de dividir com quem tem fome e sede. Aprendemos que jamais deve-se recusar o "cálice" e nem tomá-lo egoisticamente, de modo que encontro aí uma razão semelhante pela qual teria Paulo repreendido severamente os coríntios:

"Quando, pois, vos reunis no mesmo lugar, não é a ceia do Senhor que comeis. Porque, ao comerdes, cada um toma, antecipadamente, a sua própria ceia; e há quem tenha fome, ao passo que há também quem se embriague. Não tendes, porventura, casas onde comer e beber? Ou menosprezais a igreja de Deus e envergonhais os que nada têm? Que vos direi? Louvar-vos-ei? Nisto, certamente, não vos louvo." (1ªCo 11:20-22)

A Igreja é lugar de comunhão verdadeira e daí entendo que, quando Paulo disse "se alguém tem fome, coma em casa" (1ªCo 11:34), o apóstolo também leva os seus leitores a refletir sobre o nível de compreensão que deve acompanhar a vida comunitária eclesiástica. Pois, em Cristo, somos chamados para formar uma nova família de modo que deixamos de ser uma reunião de "grupos de casas paternas", conforme pode ser traduzido 2Cr 35:12. Então, quem ainda não alcançou essa consciência e não está disposto a dividir, que faça seus banquetes particulares na própria residência, mas não deve trazer para o convívio da congregação os costumes desiguais de uma sociedade secular injusta.

Assim, pode-se concluir que foi dentro desse ambiente alternativo que o nosso Senhor estabeleceu um novo pacto/aliança (ou a atualização da memória do ocorrido no Sinai entre os israelitas da época de Moisés). Foi quando o Mestre ofereceu algo eterno e inquebrável que não mais depende da repetição dos antigos sacrifícios de animais, conforme o sistema penitencial ainda adotado em seu tempo. Antes nos colocou diante de um pacto de elevado nível consciencial em que Deus considera cancelados todos os nossos pecados. E, estando nós agraciados incondicionalmente, independente das obras feitas, passamos a viver dentro de um outro padrão ético, perdoando/amando o irmão da mesma maneira como fomos perdoados/amados pelo Pai Celestial. Se falhamos, não mais temos que cultivar dentro de nós a culpa que é coisa cancerosa e improdutiva. A atitude correta torna-se a reparação voluntária do mal dentro da prática contínua do bem, visto que o amor compõe a essência do Cristo.

Desejo a todos uma feliz Páscoa!


OBS: A ilustração acima refere-se a um fresco do Mosteiro Kremikovtsi, Bulgária, do século XVI. A autoria da foto, de 06/05/2011, é atribuída a Edal Anton Lefterov que a dedicou ao domínio público. Extraí a imagem do acervo virtual da Wikipédia conforme consta em http://en.wikipedia.org/wiki/File:Last-supper-from-Kremikovtsi.jpg

Comentários

Levi B. Santos disse…
“Quando o homem partilhava uma refeição com o seu deus, estava expressando a convicção de que eram partes de uma só substância; e nunca partilharia essa ceia com quem considerasse um estranho” (Freud – Totem e Tabu – pag 162)

Mas, aí ô Rodrigo: o mais importante hoje não é sentar à mesa com o inimigo?

Diz-se que o maior mérito do judaísmo de nosso tempo é ter um elemento subversivo no seio de tudo o que pareça ser absoluto e dogmático. (rsrs)

Precisa-se democratizar o Pessach. Ou não?
Bom dia, Levi!

Boas perguntas que o irmão fez!

Não sei dizer se sentar à mesa com o inimigo seria o mais importante. Precisaríamos aí estabelecer um comparativo, mas, se for em relação aos amigos, digo que com estes ainda é mais agradável fazer nossas refeições. Ainda assim, urge buscar o diálogo com os nossos adversários pelo bem da coletividade humana e da sobrevivência planetária. Resta também saber se a outra parte vai aceitar o convite.

Fora isso, o ser humano possui um grande anseio de comunhão com seu próximo, o que é importantíssimo na caminhada do auto-conhecimento. Não existe a assembleia ou igreja de um homem só! Daí a necessidade de comungarmos com os amigos num ambiente de intimidade como teria feito Jesus ao se sentar à mesa com os seus discípulos. Segundo os evangelhos, o Mestre teria já dialogado com os fariseus e saduceus, bem como com o povo, mas a noite em que era comido o cordeiro havia chegado e aquele grupo de seguidores era a nova família do Senhor.

Assim, penso já ter respondido a sua segunda indagação pelo que concluo dizendo que o diálogo deve ser democratizado, mas a comunhão pascal é algo para ser ampliado a seu tempo conforme o relacionamento de intimidade que for surgindo. Claro que todos, sem acepção de pessoa, são chamados para se elevar a esse nível.
Antes que eu me esqueça, reitero aqui os votos de feliz Páscoa conforme já havia feito em outros ambientes de internet. A paz do Senhor! Shalom!