Afinal, que "gigantes" eram esses da época de Noé?



"Ora, naquele tempo havia gigantes [hebr. nephilim] na terra; e também depois, quando os filhos de Deus possuíram as filhas dos homens, as quais lhes deram filhos; estes foram valentes, varões de renome, na antiguidade." (Gênesis 6:4; ARA)

Como quase sempre ocorre, todo diretor de cinema que realiza um trabalho cultural com uma certa margem de liberdade em relação ao texto da Bíblia acaba sendo excessiva e duramente criticado pelas mentes religiosas mais fechadas. E dessa Darren Aronofsky, um dos autores do filme Noé, estrelado por Russell Crowe, também não escapou. Vejam abaixo o que comenta uma resenha publicada no jornal New York Times, atribuída a Anthony Oliver Scott:

"o Sr. Aronofsky, que escreveu o roteiro com Ari Handel, tomou algumas liberdades com o texto. Por exemplo, enquanto a Bíblia observa que 'havia gigantes naqueles dias', as Escrituras não especificam que eles eram colossos de pedra de seis braços com as vozes de Nick Nolte e Frank Langella" (traduzido com a ajuda do Google)

Mas atire a primeira pedra quem nunca fantasiou as narrativas bíblicas!

Quem garante que os exegetas e intérpretes também não deram asas à imaginação e foram transmitindo um valioso ensino de geração em geração? Pois, se bem refletirmos, os nephilim (prefiro usar o original transliterado da Palavra) não teriam sido chamados assim necessariamente por causa de uma suposta estatura física muito grande? Isto porque outros possíveis significados para o vocábulo hebraico em nosso idioma seriam os termos "poderosos", "caídos" ou ainda "aqueles que causam a queda de outros", de maneira que uma interpretação contextualizada faz-se necessária para melhor entendermos o assunto.

Ora, nos capítulos 4 e 5, Gênesis fala sobre os perversos descendentes de Caim e a boa linhagem de Sete, o qual foi o terceiro filho de Adão e Eva, nascido após a morte de Abel. Enquanto os filhos de Caim tornaram-se violentos homicidas e maridos polígamos, os de Sete invocavam o nome do Senhor (Gn 4:26), dando a entender o texto que eles desenvolveram um relacionamento de oração com Deus. Provavelmente repetiram a oferta dada por Abel reconhecendo a si mesmos como dependentes da bondosa graça do Criador e do perdão do Altíssimo.

Todavia, se meditarmos nos quatro primeiros versos de Gênesis 6, poderemos admitir a seguinte interpretação em que os "filhos de Deus", isto é, os da semente de Sete, passaram a tomar para si como esposas aquelas que "entre todas, mais lhes agradavam" (versículo 2). Daí admitir-se a suposição de que a descendência de Sete também teria se corrompido num momento posterior, seja pela quebra da ordem monogâmica estabelecida no Jardim do Éden e/ou originada pelos desvirtuosos casamentos com as mulheres da linhagem de Caim. E assim surgiram os terríveis "gigantes" pré-diluvianos, os quais podem muito bem ter sido os antigos governantes de reinos formados pela mistura das duas sementes.

Segundo o mestre judeu medieval Rashi (1040-1105), a expressão "todas", embora aparentemente supérflua, significa ainda perversão sexual, o que incluiria uniões com mulheres casadas e o matrimônio/cópula realizado contra a vontade da mulher. Porém, numa visão mais aprofundada, podemos entender que a tragédia humana narrada na Bíblia consistiria na sedução pelo comportamento depravado em todos os sentidos (não apenas no aspecto sexual) juntamente com o abandono da fé em Deus, algo que trouxe a destruição da espécie humana a ponto de somente uma família de oito pessoas conseguir se salvar do dilúvio. É o que podemos conferir no livro apócrifo Sabedoria de Salomão, onde o autor associa os gigantes ao orgulho (suponho que caracterizado pelo sentimento de autossuficiência de direcionamento em relação ao Criador):

"Pois quando, nas origens, pereciam os gigantes orgulhosos,
a esperança do mundo se refugiou numa jangada
que, pilotada por Tua mão,
aos séculos futuros deixou o germe de uma geração nova." (Sb 14:6; BJ)

Uma outra obra judaica antiga, também encontrada na versão da Bíblia de Jerusalém, o escritor assim comenta acerca dos nephilim, sendo meus os destaques em negrito:

"É lá que nasceram os gigantes, famosos desde as origens,
descomunais na estatura e adestrados na guerra.
Mas não foi a eles que Deus escolheu,
nem a eles indicou o caminho do conhecimento.
Por isso pereceram, por não terem a prudência;
pereceram por sua irreflexão
" (Baruque 3:26-28)

O que podemos aprender dessa lição bíblica é que todo ser humano seria capaz de tropeçar nos seus princípios éticos e decair a ponto de cometer as piores monstruosidades por mais que se agigante em poderio político-militar, quer tenha ele uma boa origem religiosa ou não. Para os israelitas antigos, Moisés estava de algum modo lhes advertindo que, embora fossem filhos legítimos do patriarca Abraão, poderiam sofrer um juízo de condenação caso andassem nas obras erradas dos cananeus quando viessem a tomar posse da Terra Prometida. E, neste sentido, a mensagem das Escrituras Sagradas permanece atual para a nossa geração e todas as demais que vierem a nos suceder futuramente.

"Qual a mosca morta faz o unguento do perfumador exalar mau cheiro, assim é para a sabedoria e a honra um pouco de estultícia" (Eclesiastes 10:1; ARA)

Para finalizar ressalto que o mal não está necessariamente no outro, mas se trata de uma realidade existente dentro de nós. Pois se os descendentes de Sete teriam mesmo se unido às mulheres perversas da linhagem de Caim, em tal caso não foi porque os chamados "filhos de Deus" teriam estabelecido um elo de identificação com a vida errante delas? Assim sendo, há em nosso interior tanto a boa quanto a má semente, mas cabe ao homem procurar escolher com prudência o caminho correto, jamais se curvando em seus valores éticos superiores visto que o agigantamento de poder não raramente se faz acompanhar pela baixeza de caráter.


OBS: A ilustração acima trata-se de um poster utilizado para a divulgação do filme Noah (Noé).

Comentários

Este texto eu havia publicado-o originalmente em abril do corrente ano no meu blogue pessoal. Achei que seria oportuno compartilhá-lo também aqui. Vale lembrar que o recém lançado filme Noah colocou o personagem bíblico em evidência este ano, que considero bem positivo para instigar edificantes discussões.
Levi B. Santos disse…
“Porém, penso que haja casos em que espíritos malignos estão de fato a causar doenças e perturbações em consciências que vivem na fisicalidade. ( Rodrigo)

Por esse trecho do seu último comentário, ao texto posterior aqui postado, o religioso pode até imaginar que esses gigantes eram “espíritos”.(rsrs)

No meu caso, prefiro ficar com o de “perturbações mentais, vistas como físicas no imaginário de homem religioso primitivo”. (rsrs)
Caro Levi,

Ainda sobre o debate anterior, prefiro ficar com as duas possibilidades. Eu acredito na existência de espíritos, isto é, de consciências melhor assim dizendo. E, como nem tudo se esgota na fisicalidade, a consciência continua a existir mesmo fora do corpo.

Ora, um espírito sem corpo físico não interagiria de alguma maneira com as pessoas "vivas" (que têm corpos físicos)? E de alguma maneira isso não poderia causar males?

Mas em relação ao texto de Gênesis, acho complicada a hipótese de que anjos teriam vindo à Terra transar com as mulheres. Pois a primeira indagação que se apresenta em nossas mentes seria como eles teriam o ato sexual sem o corpo? Acredito que possa haver espíritos malignos que sejam atraídos pela promiscuidade das pessoas ou que instiguem tanto homens como mulheres a praticar perversões sexuais, adultérios, etc. Mas quanto a um anjo ter cópula com mulheres e ainda engravidá-las parece-me absurdo. Logo, mesmo sendo um religioso, eu descartaria tal interpretação da Bíblia, exceto se for por seu aspecto mítico (da própria interpretação elaborada pela Teologia).

De qualquer modo, as uniões entre os filhos de Seth com as filhas de Caim podem ter prenunciado os perigos dos casamentos mistos. E, investigando a Bíblia por esse lado, pode-se extrair daí muitas lições. Não concorda?
Levi B. Santos disse…
Não conferi o filme NOAH, Rodrigo, mas segundo alguns estudiosos, a idéia desse filme se assemelha muito ao imaginário dos grupos que desejam unir o fundamentalismo religioso com o fundamentalismo ecológico.

Eduardo Medeiros disse…
Rodrigo, só podemos nos chegar ao texto do dilúvio de fato, em sua forma mítica. Não descarto que eventos históricos deu origem ao mito, aliás, isso é bem normal. Pesquisas apontam que o Mediterrâneo sofreu uma elevação na antiguidade que inundou toda aquela área, daí mitos babilônicos, sumérios, etc com teores bem parecidos com o relato do Gênesis.

Sobre o aspecto literário do texto, Gn 6 só pode se referir aos anjos caídos que trata o livro de Enoque e atesta a epístola 2 Pedro 2.4. Enoque dá nome aos bois: o líder da revolta foi o anjo Samiasa. Por inveja do homem, já que Deus deu muito valor à sua criação, Samiase resolve corromper a raça humana, misturando-se com ela e tendo relações sexuais com as filhas dos homens. Dessa geração vieram os gigantes (nephilins); o dilúvio foi uma tentativa de Deus acabar com tal corrupção.

"Filhos de Deus" é uma expressão no AT que sempre se refere a Anjos.

Então você me pergunta como um anjo poderia transar com uma humana. e eu lhe responderia, "põe isso na conta do mito, amigo..." rss
Levi B. Santos disse…
“Porém, penso que haja casos em que espíritos malignos estão de fato a causar doenças e perturbações em consciências que vivem na fisicalidade”.
.
Rodrigo

Os arautos da IURD e das seitas pentecostais são peritos em matéria de “espíritos malignos”. Para eles o Código Internacional de Doenças Mentais está repleto de doenças causadas por espíritos malignos, que saem através do exorcismo. (rsrs)
Sem dúvida que não passa de uma produção mais com o objetivo sensacionalista afim de gerar bilheteria. Porém, sempre há um detalhe ou outro interessante e que pode proporcionar alguma polêmica entre religiosos, teólogos, etc. Faz parte da indústria cinematográfica e eu convivo bem com isso. E sobre a questão ecológica, acho bem pertinente porque do jeito que a humanidade caminha, o século XXI poderá ser catastrófico. Aliás, já está sendo com tantas secas, tempestades, tornados, etc. Veja a Filipinas, Região Serrana do Rio, Nova Orleans, Centro dos EUA, entre inúmeros outros lugares.
Você tocou em alguns pontos bem polêmicos, Edu.

Sobre os dilúvios, há inúmeros relatos em diversas culturas ao redor do mundo, o que para uns leva a um evento comum enquanto outros estudiosos consideram que tais relatos seriam decorrentes das experiências dos povos no assentamento dos vales quanto ao enfrentamento das inundações.

Os relatos do livro apócrifo de Enoque, apesar de serem mitos revelam sempre coisas que podemos aproveitar para a edificação. Dentro do que expôs, podemos aí considerar a nocividade das relações sexuais pervertidas para a humanidade e para a família. Podemos ver aí que a impureza sexual contribui para a corrupção das consciências sendo capaz de perturbar a ordem criada. Ou seja, trata-se da ordem de uma sociedade em que a fidelidade entre os cônjuges, o cuidado e o amor entre os entes de uma família precisam ser preservados.
Pois é, Levi. O grande mal estaria no risco da generalização. As doenças mentais não são necessariamente decorrentes de "possessões demoníacas", mas não descarto que possa haver transtornos psíquicos causados pelo assédio interconsciencial (entre uma consciência extrafísica e outra intrafísica). Contudo, pode haver também o auto-assédio em que o próprio paciente contribui para gerar e alimentar seu transtorno, assim como a influência de uma consciência intrafísica sobre outra também intrafísica. Muitas vezes porque não sofremos ataques do mundo espiritual temos a tendência de descartar o que de fato possa estar ocorrendo com algumas pessoas em nossa volta. Por outro lado, há quem generalize os fatos como sendo "obras do capeta" e ainda as seitas que se aproveitam dessa mal atendimento. Aliás, não só no meio evangélico como em outras religiões também.
É bom voltar ao seu blog, ver e ler o que está publicando,só posso agradecer pelos textos,
com que nos presentei-a,e posso dizer que tem aqui um agradável blog,
desejo que continue de saude e com muita paz.
Deixo as minhas saudações, com desejo de muitas felicidades.
Sou António Batalha.
Do Peregrino E Servo.