“A Academia Paciente de Letras”





Por Isra Toledo Tov (*)
(Memorialista e pesquisador da história da Mata da Paciência)



Mariano Odelot, em abril de 1975, acordou certa manhã decidido a fundar uma academia de letras em Paciência, bairro pobre da periferia carioca, contando à época com pouco mais de 45 mil habitantes. Pegou papel e caneta e listou todas as poetisas, todos os poetas, todas as escritoras e todos os escritores que viviam no rincão periférico paciente.

Conseguiu juntar uma poetisa, um poeta, uma jornalista (que escrevia artigos e crônicas num jornal do comércio de Campo Grande) e sua própria insigne pessoa e marcaram uma reunião deliberativa para o meado de abril. Preparou um bosquejo de ata de reunião, com uma pauta bem simples. Item 1: escolha do nome da academia, sugeria-se Academia Paciente de Letras; item 2: um/a presidente/a deveria ser eleito/a nessa primeira reunião; item 3: um local fixo para reuniões e palestras deveria ser encontrado ou construído; item 4: uma personalidade nacional ou internacional deveria ser homenageada no primeiro ano de existência da academia; item 5: um ciclo de palestras já deveria ser agendado para o primeiro mês de existência da nobre academia.

A reunião deliberativa ocorreu, de fato, no armazém das Nove Portas, na rua Serrolândia, no Jardim Sete de Abril, um modestíssimo estabelecimento pertencente a um português, o Seu José. Na parte externa, com uma mesa de madeira cedida pelo dono do local, mais quatro rústicas cadeiras, montou-se a sede provisória da APL (Academia Paciente de Letras). Mariano se vestiu cerimoniosamente para a ocasião, pois considerava de máxima relevância para a cultura local, paciente, a fundação de uma inspiradora academia de letras.

Logo no início dos trabalhos da tertúlia, verificou-se que nenhum deles, nem a poetisa, nem o poeta jamais tinham publicado um livro sequer! Tudo o que tinham eram textos e poemas dispersos, em folhas de caderno, no máximo um ou dois fragmentos datilografados. O jornalista, porém, sabiamente ponderou que a literatura oral, ágrafa, era tão importante quanto a escrita, e o fato de não haver livros publicados entre eles não lhes tirava o orgulho e a honra de serem literatos. Eram grandes e sedentos leitores, inveterados, já que liam de prosa a poesia, sem descanso, diuturnamente. Sempre andavam pelas ruas do bairro com livros sobre os braços, e até mesmo a vizinhança percebia nisso uma certa mescla de distinção com leve demência.

Ao fim de duas horas de reunião, deliberou-se que, todas as últimas sextas-feiras de cada mês, reunir-se-iam às 17 horas, no mesmo lugar, no armazém do Seu Zé das Nove Portas, na rua Serrolândia, esquina com rua Carapicuíba. Uma pessoa ficaria encarregada de trazer, numa garrafa térmica, um chá de camomila, ou de hortelã, ou de outra erva qualquer, para que a conversa e os debates literários pudessem fluir com maior vazão.

O primeiro item da pauta de reunião foi decidido facilmente, e a plêiade deliberou que o nome Academia Paciente de Letras (APL) caía muito bem para o grupo. O segundo item foi igualmente resolvido com agilidade: optou-se pela rotatividade automática da presidência da APL, sem votos, começando a escolha pela ordem alfabética do primeiro nome de cada membro. Assim, Mariano – que deu a ideia da rotatividade – só assumiria a presidência do colegiado no quarto ano de sua existência, já que a primeira presidenta seria a poetisa Amália. O segundo presidente, no segundo ano da APL, seria o poeta Fúlvio. A terceira presidenta, Gretchen, assumiria no terceiro ano de constituição da APL.

O terceiro item da pauta – a construção de um local fixo para reuniões e eventos – ficou para a reunião seguinte. O quarto item – que grande personalidade deveria ser escolhida como homenageada do ano – consumiu mais tempo do que se supunha. Mariano propôs Lima Barreto, pois venerava sua obra, "Os bruzundangas". Amália apostava todas as suas fichas em Luís Vaz de Camões. Fúlvio bateu pé por "Dom Quixote", o cavaleiro da triste figura, mas o grupo deixou claro que precisava ser alguém de carne e osso, não uma personagem célebre. Gretchen, mais ousada, sugeriu Johann Wolfgang von Goethe, o maior nome da literatura alemã, autor de "Fausto" e "Werther". O grupo silenciou, refletiu profundamente e aceitou o arroubo da jovem jornalista. No primeiro ano de fundação da Academia Paciente de Letras, o escritor homenageado seria Goethe, o gênio alemão nascido em Frankfurt, em 1749, e falecido em Weimar, em 1832, do alto de seus 82 anos burgueses bem vividos.

Decidiram iniciar, imediatamente, a leitura de "Werther", seu primeiro trabalho de sucesso instantâneo em toda a Europa, em 1774. Foi uma delícia para os quatro corações da APL a leitura do diário angustiante do jovem rapaz apaixonado pela distante Charlotte. Terminada a leitura do romance, partiram para a obra mais densa do intelectual alemão, o "Fausto", publicamente postumamente, em 1832. Os debates eram acalorados, a cada encontro da tertúlia paciente, e sempre havia pessoas convidadas, de fora da APL, de outros bairros; até mesmo da Zona Sul veio um dia uma moça que fazia mestrado em literatura alemã.

O quinto item da pauta – a escolha de um tema para um círculo de palestras – foi facilmente acertado: optou-se por uma série de palestras acerca da vida e da obra de Lima Barreto, o homenageado do ano pela APL. Desta vez, o primeiro palestrante a falar, dentro de quinze dias, seria o último a assumir a presidência da instituição, Mariano Odelot! Apresentou, com brilhantismo, a obra "Os bruzundangas" (publicada em 1922), comparou o mundo da obra satírica com o Brasil de então, e foi bastante elogiado pelos colegas da APL e convidados. O pobre do Seu José do Nove Portas era obrigado a trazer cadeiras de sua própria residência para acomodar o grupo literário que tanto crescia. Ainda bem que o encontro só ocorria na última sexta-feira de cada mês, minha Santa Eugênia!

O símbolo oficial da instituição literária paciente era bastante semelhante ao da Academia Brasileira de Letras: o lema “AD IMMORTALITATEM” (“Rumo à imortalidade”, em latim), no centro, e dois galhos ao lado. Diferentemente, porém, do símbolo da ABL, o galho da esquerda era de cana-de-açúcar e o da direita era de café, dois produtos responsáveis pela riqueza do bairro no século XIX. E, no alto e no topo do símbolo, uma laranja, representando a riqueza paciente até o início dos anos de 1950.

Amália passou, anos depois, para um concurso público nacional e foi trabalhar em Rondônia. Fúlvio mudou-se para Belford Roxo, a contragosto, após namorico com a filha de um policial militar... Engravidou a pobre donzela, foi casado à força, na Baixada Fluminense, e toca hoje um bar longínquo por lá, vendendo cervejas e organizando pequenos saraus. Gretchen estudou, profundamente, a língua alemã, no Instituto Goethe, na rua do Passeio, no centro do Rio, conheceu um alemão e vive hoje com ele no interior da Baviera, no Sul da Alemanha. Mariano Odelot, desolado, não conseguiu manter as tertúlias mensais na calçada do Seu Zé das Nove Portas, já que não conseguia juntar membros tão valorosos quanto os três que se perderam no mundo. Até hoje diz existir ainda a APL, mas ela não tem endereço, não realiza reuniões, nem encontros, nem seminários, nem debates, nem nada. A Academia Paciente de Letras é apenas uma lembrança remota de Mariano, mas nunca deixará de existir, ainda que só possua um único membro paciente.

Mata da Paciência, 1.o de agosto de 2015.

(*) Isra Toledo Tov é professor e escritor- Escreve semanalmente na Santa Paciência.

OBS: Texto e imagem extraídas da página no sítio de relacionamentos Facebook "Santa Paciência", conforme consta em https://www.facebook.com/GuaraciRosaHistoriador/photos/a.1807970865894245.1073741829.1800233896667942/1919259084765422/?type=3&theater

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