quarta-feira, 26 de novembro de 2025

José Afonso da Silva — um legado para o Direito e a democracia

 


José Afonso da Silva nasceu no interior de Minas Gerais, em uma pequena fazenda, sendo o segundo de treze irmãos. Sua vida, marcada desde cedo por dificuldades e escolhas humildes, revela uma determinação invencível: ainda jovem, trabalhou como padeiro, mecânico, garimpeiro e alfaiate para poder estudar, mostrando que o sonho de tornar-se jurista não era fruto de privilégio, mas de persistência. 


Mudou-se para São Paulo aos 22 anos, completou os estudos por meio do supletivo e, aos 28 anos, ingressou na tradicional Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), onde formou-se em Ciências Jurídicas e Sociais — marco inicial de uma trajetória cujo impacto ultrapassaria gerações. 


Pilar do constitucionalismo brasileiro


A trajetória pública de José Afonso é plural: foi advogado, oficial de justiça, procurador do Estado de São Paulo, ocupou cargos administrativos, como chefe de gabinete da Secretaria do Interior e assessor da Secretaria de Segurança, e chegou a ser Secretário de Justiça e Segurança Pública no Estado. 


Mas sua contribuição decisiva veio como jurista e constitucionalista: convidado como assessor da Assembleia Nacional Constituinte de 1987–1988, participou ativamente da redação da Constituição Federal de 1988 — a “Constituição Cidadã” — ajudando a consolidar um marco jurídico e institucional fundamental para o Brasil. 


Entre as inovações atribuídas à sua atuação constitucional está a inclusão do conceito de “Estado Democrático de Direito” no texto constitucional e a concepção de mecanismos de proteção dos direitos fundamentais, como o direito ao “habeas data”. 


Mestre das Arcadas, formador de gerações


Na vida acadêmica, José Afonso foi figura central. Tornou-se livre-docente pela USP e pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e foi professor titular no Departamento de Direito Econômico e Financeiro da USP. Lecionou também em outras instituições, formando uma infinidade de juristas, magistrados, advogados e professores — muitos dos quais hoje ocupam posições de destaque. 


Sua obra doutrinária é monumental. Entre seus livros, destaca-se Curso de Direito Constitucional Positivo, frequentemente apontado como o estudo mais completo e atualizado sobre a Constituição, usado como referência essencial por estudantes, advogados e magistrados.  Outro livro importante foi Poder Constituinte e Poder Popular, que contribuiu de modo decisivo para o entendimento e a teoria da soberania popular e do papel do poder constituinte no ordenamento jurídico. 


Doutrina viva nos tribunais e militância pela democracia


A influência de José Afonso perdurou não apenas nos livros e salas de aula, mas também nas decisões da mais alta corte do país: segundo levantamento da própria USP (1988–2012), ele foi o constitucionalista mais citado pelos ministros do Supremo Tribunal Federal em julgamentos de controle concentrado — o que atesta a densidade e a atualidade de seu pensamento. 


Mesmo em idade avançada, José Afonso manteve-se atuante e engajado na defesa do Estado democrático de direito. Em 2022, durante a leitura de uma nova “Carta aos Brasileiros”, reafirmou com veemência a importância de resistir a ameaças autoritárias e preservar os valores constitucionais — visão coerente com sua trajetória como educador, jurista e cidadão comprometido com a justiça e a cidadania. 


Um legado que transcende o tempo


Com sua partida aos 100 anos, o Brasil perdeu não apenas um grande jurista, mas um verdadeiro arquiteto do constitucionalismo moderno, um mestre que transformou o direito em instrumento de dignidade, liberdade e justiça social. 


Seu nome permanecerá vivo na doutrina, na jurisprudência e na consciência institucional do país — ecoando nas salas de aula, nos tribunais, nas leis e nos corações de quem acredita no valor da Constituição como guardiã dos direitos e da democracia.


Que sua memória inspire as futuras gerações a cultivar o direito como arte do possível e ao mesmo tempo alicerce da transformação social.

sábado, 22 de novembro de 2025

Novembro de 1910 – Quando a chibata virou símbolo de resistência



Há exatos 115 anos, o Brasil assistiu a um dos episódios mais marcantes da luta por dignidade e direitos humanos em sua história naval: a Revolta da Chibata. Liderada pelo destemido João Cândido Felisberto (1880 - 1969), marinheiro negro, o movimento denunciou os castigos físicos, como o uso da chibata, impostos a marinheiros, a maioria descendentes de africanos, que enfrentavam condições de extrema exploração, fome e humilhação diária. João Cândido tornou-se símbolo de coragem e resistência, mostrando que a luta pela igualdade e respeito à vida humana pode nascer mesmo nas circunstâncias mais adversas.


A revolta começou no dia 22 de novembro de 1910, quando os marinheiros do encouraçado Minas Geraes se rebelaram contra os castigos violentos. Durante os quatro dias seguintes, o movimento se espalhou por outros navios da esquadra e tomou força suficiente para exigir mudanças concretas: o fim das punições físicas e melhores condições de trabalho. Apesar de inicialmente bem-sucedidos, os líderes, incluindo João Cândido, enfrentaram traições e represálias, com muitos sendo presos ou perseguidos. Mas a coragem daqueles dias permanece viva como exemplo de resistência contra a injustiça.


Essa história de bravura e luta ressoa profundamente com a Semana da Consciência Negra, lembrando-nos que a luta por igualdade racial e direitos humanos é contínua e necessária. João Cândido não lutou apenas por si, mas por todos aqueles que eram silenciados e oprimidos, e sua coragem inspira até hoje movimentos por justiça social no Brasil.


Salve o Almirante Negro!


💭 Nota pessoal: Meu bisavô, Francisco Ancora da Luz (1883-1951), pai do meu avô paterno, era oficial da Marinha naqueles tempos. Segundo alguns relatos familiares, ele teve a oportunidade de conhecer João Cândido e concordava com seu movimento. É de grande honra para a nossa família que a estátua de João Cândido esteja atualmente na Praça Marechal Ancora, logradouro do Centro do Rio, próximo à Praça XV, que homenageia outro ancestral nosso mais antigo, porém oriundo do Exército, simbolizando a conexão entre coragem, memória e legado familiar.


📷: Registro do líder da Revolta da Chibata, João Cândido (primeira fileira, à esquerda do homem de terno escuro), com repórteres, oficiais e marinheiros a bordo do Minas Geraes em 26 de novembro de 1910.

sexta-feira, 21 de novembro de 2025

COP30: Entre Ausências, Expectativas e a Disputa por Liderança Climática Global



A Conferência do Clima realizada em Belém — a tão aguardada COP30 — carregava desde o início um simbolismo especial. Afinal, discutir o futuro do planeta no coração da Amazônia não era apenas uma escolha geográfica, mas um gesto político que trazia consigo a esperança de que esta fosse a COP capaz de marcar uma virada decisiva. 

No entanto, conforme os dias avançaram e os desfechos foram se desenhando, ficou evidente que a conferência oscilou entre avanços técnicos importantes, sinais de esgotamento político e a persistente sensação de que o mundo continua empurrando a crise climática com a barriga.

Um dos elementos que mais chamou a atenção — e já antecipava certa dificuldade — foi a ausência dos presidentes dos Estados Unidos e da China, justamente os dois maiores emissores de gases de efeito estufa do planeta. 

Embora suas delegações estivessem presentes, a ausência física dos chefes de Estado enfraquece simbolicamente qualquer COP. Isto porque a presença de líderes costuma servir para destravar impasses, conferir peso às demandas mais urgentes e demonstrar que o clima é realmente tratado como prioridade estratégica. Logo, quando ambos se ausentam, o recado implícito é duro: outras agendas internas e geopolíticas falaram mais alto que o compromisso climático.

Tal comportamento não é apenas protocolar; é político. Os países mais vulneráveis — sobretudo nações africanas, caribenhas e amazônicas — interpretam essas ausências como falta de seriedade. E com razão. Afinal, é difícil pedir sacrifícios aos que menos contribuíram para o problema quando os maiores responsáveis sequer se dispõem a aparecer pessoalmente.

O caso brasileiro também gerou debate. Lula, anfitrião da conferência, precisou deixar Belém antes do encerramento para viajar à África do Sul, onde ocorreria a reunião do G20. Contudo, a justificativa é compreensível: o G20 tem enorme peso econômico e ambiental. Reúne países responsáveis por cerca de 80% das emissões globais e, em muitos casos, decisões sobre energia, indústria e infraestrutura são tomadas ali muito antes de chegarem ao espaço multilateral da ONU.

A diplomacia brasileira, vale reconhecer, atua fortemente em ambos os campos. Entretanto, a decisão de se ausentar nos momentos finais da COP passou a impressão de prioridade invertida, uma vez que, em conferências climáticas, é justamente no último dia que surgem os acordos mais delicados, os parágrafos mais disputados e as concessões finais — e a presença do chefe de Estado do país anfitrião costuma ter papel decisivo na pressão diplomática. Critica-se que, ao deixar Belém antes da hora, Lula correu o risco de esvaziar parte do simbolismo político que o Brasil tentava exercer como liderança ambiental.

O paradoxo é que G20 e COP não competem entre si — pelo contrário, se complementam. O G20 formula diretrizes macroeconômicas e decisões estratégicas sobre subsídios, energias, combustíveis fósseis e investimentos de grande escala. Já a COP transforma esses entendimentos em dispositivos multilaterais, compromissos formais e instrumentos de implementação. Um define o rumo; a outra define as regras e o sistema global de monitoramento.

Todavia , mesmo considerando essa conexão entre fóruns, Belém não conseguiu escapar de uma sensação de frustração moderada. Como já apontado por diversos analistas, há três caminhos possíveis para interpretar a COP30:

- um otimista, em que a conferência serve de virada concreta;

- um intermediário, com avanços parciais;

- um pessimista, em que a COP se torna mais um símbolo de oportunidades perdidas.


Até agora, a leitura mais realista é a intermediária. 

Houve avanços na discussão da Meta Global de Adaptação, no detalhamento de indicadores e na ampliação do debate sobre resiliência climática. Porém, o grande gargalo — o financiamento — continua emperrado. 

Sem recursos claros, previsíveis e suficientes, todos os compromissos assumidos tornam-se promessas frágeis, dependentes da boa vontade política e de conjunturas domésticas instáveis.

É justamente aí que as ausências de EUA e China pesam mais: sem a liderança dos maiores emissores, dificilmente o volume financeiro necessário se materializa. E, sem financiamento, não há adaptação que se sustente nem transição energética que avance com a velocidade necessária para conter o aquecimento global.

Por isso, a COP30 termina como um espelho do nosso tempo: um mundo consciente da gravidade da crise, mas ainda incapaz de mobilizar a ação política proporcional ao tamanho do problema.

Belém ofereceu ao planeta a oportunidade perfeita para uma guinada histórica — no coração da Amazônia, diante de uma crise que se intensifica ano após ano. Mas entre ausências estratégicas, prioridades divergentes e a eterna disputa por recursos, a conferência acabou ficando aquém da expectativa.

Resta agora acompanhar o desdobramento no G20 e o impacto que suas decisões terão no caminho até a COP31. 

Gostemos ou não, os próximos anos definirão não apenas o clima do futuro, mas a capacidade da comunidade internacional de agir com seriedade diante de uma ameaça global que já não admite mais adiamentos.


📷: Tânia Rego / Agência Brasil.

quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Mangaratiba, Atlântico e Memória



Há nomes que o vento leva; há nomes que a correnteza engole.

Porém, há nomes que, mesmo silenciados por ferro, corrente e decreto, permanecem como pedra viva de memória.

Estamos em Mangaratiba, no dia 20 de novembro do longínquo ano de 1860. Lá havia um jovem a quem os moradores chamavam João, mas que nasceu Kauandá, numa terra onde o mar não tinha o sabor salgado que o condenaria para sempre — até ser resgatado, mais de um século e meio depois, pelos olhos atentos de quem decide aprender, não esquecer.

Era madrugada e o vento soprava do mar, frio e úmido, carregando cheiro de madeira molhada, café recém-descarregado e suor humano. O Povoado do Saco ainda dormia em silêncio, exceto pelos sons que nunca descansavam: ondas, cordas tensionadas, mastros rangendo e, ao longe, a tosse insistente dos homens que trabalhavam sem sol e sem lua.

No alojamento dos carregadores, João despertou antes de ser chamado. Não era o despertador do feitor que o tirava do sono, mas a febre da memória — do outro lado do Atlântico.

Ele sentou-se devagar, pressionando os dedos sobre a pele marcada no peito. A queimadura, feita com ferro em brasa, nunca cicatrizara por completo. Era um brasão de dor imposto para que esquecesse o que foi. Ironia cruel: aquilo, para ele, era a única prova de que não pertencia àquele lugar.

Sussurrou para si mesmo:

— Kauandá… eu ainda sei quem sou.

De tanto repetir, temia que um dia o som fugisse de sua boca e encontrasse ouvidos errados. Por isso, guardava o nome nas frestas do pensamento, como semente escondida em solo de pedra.

O feitor abriu a porta com um chute.
— Pra fora, cães! O café chegou da serra!

Corpos exaustos se levantaram sem reclamar. Queixumes eram punidos.

Lá fora, o céu estava roxo, misto de noite e manhã. O trapiche, iluminado por lamparinas e pela névoa marítima, parecia um palco ritual de sacrifícios. Grandes canoas encostavam carregadas de sacas vindas de São João Marcos, onde o ouro negro das plantações escorria como destino.

João, com o ombro machucado, colocou o primeiro saco nas costas.
O peso lhe esmagou mais do que o corpo: esmagou lembranças.

E então, como se o mar lhe soprasse imagens, voltou a ouvir:

A canção da travessia.

Antes da dor e do sal, havia água doce.
Água de rio, não de oceano.

Kauandá crescera numa aldeia às margens de um grande rio africano, onde homens pescavam com lança e mulheres contavam histórias ao redor do fogo. Era filho de pescadores respeitados, neto de contadores de mitos, e guardava herança de água, não de ferro.

Recordava o cheiro da palha, o canto das mulheres secando peixes, a dança em noites de lua cheia. Nunca houve pressa. Nunca houve correntes.

Até o dia em que cães de fogo invadiram a aldeia — assim chamavam os homens brancos e seus aliados africanos que negociavam vidas.

Ele fora arrastado, gritando o nome da mãe, enquanto a poeira subia como fumaça de espírito.
No navio tumbeiro, após dias de desespero, conheceu o som do mar infinito.
E aprendeu a verdade cruel:
a água que antes nutria, agora punha medo.

Mas havia mais.

Uma voz feminina, fina como fio de esperança, cantava todas as noites uma canção de resistência espiritual, não traduzida em língua portuguesa, cuja essência dizia:


“Ninguém morre enquanto o nome viver.”


Por isso, a primeira coisa que ele se prometeu guardar não foi o corpo, mas o nome.



O Povoado do Saco prosperava: comércio pulsante, trapiches sólidos, armazéns apinhados, barcaças indo e vindo, senhores enriquecendo com o café do Vale do Paraíba. A economia gotejava riqueza, enquanto homens marcados, comprados, renomeados, carregavam o mundo nas costas.

O teatro local fazia apresentações para os homens livres, os comerciantes e os filhos de fazendeiros.
O riso deles ecoava enquanto os escravizados dormiam no chão duro, com o gosto metálico do cansaço preso na boca.

E, mesmo assim, sementes cresciam em lugares que ninguém via.

Durante o pouco descanso permitido, Bastião, um velho cuja idade ninguém sabia, perguntou:

— Tu fala sozinho, João?
— Eu falo com quem eu era — respondeu baixinho.
— Quem tu era?
— Kauandá.

Bastião fechou os olhos.
E, naquele instante, ambos compreenderam: nem tudo estava perdido.

Próximo da mata, correu um boato:
— Há negros vivendo longe das vistas dos senhores. Vivendo como se fossem donos do próprio nome.

A ideia de liberdade começou, então, a tomar forma em seus pensamentos — ainda tímida, porém firme como casco de árvore.

Séculos depois, embora de uma maneira diferente, as descendências daquela semente estariam de pé em Mangaratiba:


  • Quilombo da Ilha da Marambaia
  • Quilombo de Santa Justina / Santa Izabel


O que era rumor virou território reconhecido, e o que era sussurro virou história declarada.



Cerca de 165 anos depois, o antigo povoado do Saco já não mais existia. Porém, ali perto, uma escola da rede municipal de ensino prepara a sua celebração.

A professora escreve no quadro:

“137 anos após a abolição: reparar, lembrar, honrar.”

Um aluno abre um caderno e lê uma referência mínima no material didático:
“Escravizado chamado João — Porto do Saco, séc. XIX.”

O jovem franze a testa, sente uma pontada estranha no peito, fecha os olhos e sussurra, sem saber por quê:

— Kauandá.

E, pela primeira vez em mais de um século,
um nome respira com ar próprio.

 

Alguns nomes são escritos.
Outros, sobrevivem.

Kauandá sobreviveu.

Incluir o amor na vida da nossa nação



No Dia da Bandeira, o deputado Chico Alencar (PSOL-RJ) retomou uma proposta de enorme significado simbólico e político: o Projeto de Lei n.° 5.883/2025, que propõe incluir a palavra “Amor” no lema da bandeira nacional, transformando o famoso “Ordem e Progresso” em “Amor, Ordem e Progresso”.

Para muitos, a bandeira é apenas um símbolo visual, algo de cerimônia. Porém, há momentos em que ela pode — e deve — nos lembrar de ideais mais profundos. 

O projeto do deputado Alencar é exatamente isso: não se trata de uma simples reformulação estética, mas de resgate de uma filosofia original, a do positivismo comtiano, onde “amor por princípio” não era uma frase de efeito, mas a base moral de uma visão de mundo.

Aqui no meu blog, na postagem Protejam o vermelho e o verde no Brasil!, de 12/02/2024, já escrevi sobre a importância de preservar e ressignificar nosso símbolo maior — de enxergá-lo como algo vivo, mais do que histórico. Daí citei o samba do Salgueiro daquele ano, o qual expressou uma possível visão dos excluídos povos indígenas:


"Antes da sua bandeira, meu vermelho deu o tom

Somos parte de quem parte, feito Bruno e Dom

Kopenawas pela terra, nessa guerra sem um cesso

Não queremos sua ordem, nem o seu progresso"


Sem dúvida, o corajoso projeto legislativo do nobre parlamentar é um convite ao respeito, ao pertencimento, à diversidade simbólica de quem somos como povo. 

Incluir “amor” no lema nacional seria reafirmar que a nossa pátria tem vocação para cuidar, para se importar, para amar — até na sua concepção mais simbólica.

O PL n.° 5.883/2025, portanto, é também um ato de esperança. Em tempos difíceis — com polarização, desigualdades profundas, crises sociais — reafirmar que o amor está no princípio daquilo que nos une é uma declaração de fé no Brasil. Ordem e progresso sem amor são vazios; com amor, ganham sentido.

Além do mais, a proposta não surge do nada: ela dialoga com vozes históricas, como a de Jards Macalé, músico que defendia essa visão full do positivismo. E já teve apoio no passado, por exemplo, do senador Eduardo Suplicy.

Por tudo isso, acredito que apoiar o PL 5.883/2025 não é apenas propor uma mudança de lema. É apoiar um Brasil mais ético, fraterno e comprometido com a dignidade humana. É mostrar que símbolos nacionais não são coisa do passado — podem ser instrumentos de transformação.

quarta-feira, 19 de novembro de 2025

Por que não posso usar poço artesiano se já tenho água da rede pública? Entenda a decisão do Tribunal de Justiça!



Recentemente, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, ao julgar o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas de número 0090629-83.2021.8.19.0000, decidiu que não é permitido usar poços artesianos (poços profundos que pegam água subterrânea) em locais onde já existe abastecimento de água pela rede pública.


A determinação vale para todo o Estado do Rio de Janeiro e foi tomada para proteger a saúde da população, o meio ambiente e a segurança do abastecimento de água.


Fato é que a água de poço pode parecer limpa, mas não é garantido que seja segura. Diferente da água fornecida pela rede pública, que passa por tratamento, testes diários e controle sanitário, a água subterrânea:


  • pode ter bactérias invisíveis;
  • pode estar contaminada por esgoto;
  • pode conter produtos químicos;
  • ou pode conter metais pesados que vêm do solo.


Como o poço não é fiscalizado todo dia, ninguém garante que a água é potável. Por isso, usar essa água em casa pode causar doenças — principalmente em crianças e idosos.


Fazer uso de poço onde já existe água encanada prejudica o aquífero. Isto porque debaixo do chão existe um "depósito natural" de água chamado aquífero pois quando muita gente tira água dele ao mesmo tempo, acontecem problemas como:


  • rebaixamento do nível de água subterrânea;
  • risco de o solo afundar,
  • entrada de água salgada (nas cidades litorâneas);
  • secamento de nascentes e córregos próximos.


Ou seja: a exploração descontrolada prejudica quem depende dessa água hoje e no futuro!


Além disso, poços artesianos podem contaminar o abastecimento público! O motivo é que as tubulações de uma casa são todas conectadas.


Assim sendo, se uma instalação tiver simultaneamente à água da rede pública à água de poço na mesma estrutura, pode haver retorno da água contaminada para a rede da cidade, colocando em risco toda a população. É por isso que a Lei Federal n.° 11.445/2007 proíbe misturar os dois sistemas no mesmo imóvel.


Corretamente a legislação exige que, tendo rede pública, o imóvel seja ligado a ela. Desse modo, se existe uma rede pública de água na rua, a ligação é obrigatória e isso garante:


  • padrão mínimo de qualidade;
  • fiscalização;
  • prevenção de doenças;
  • e abastecimento sustentável.


Poço só pode ser usado em:


  • áreas rurais;
  • locais sem água encanada;
  • ou casos especiais, com autorização.


Portanto, a decisão do TJERJ protege o bem comum!


Não podemos esquecer que a água subterrânea é um bem público — não é propriedade particular.
Logo, o Estado tem o dever de:


  • proteger esse recurso;
  • evitar desperdício;
  • prevenir colapso hídrico;
  • e garantir água tratada para todos.


Ao proibir poços em zonas urbanas com rede pública, a decisão do Tribunal está evitando danos ambientais e riscos à saúde.


RESUMINDO, pode-se afirmar que tal regra existe porque:


✔ Água de poço pode não ser segura;
✔ O uso descontrolado prejudica o meio ambiente;
✔ Misturar sistemas pode contaminar a rede pública;
✔ Onde já há água encanada, o uso é obrigatório;
✔ A proteção da água é um dever coletivo.


Vamos cumprir a Lei e a decisão da Justiça!

terça-feira, 18 de novembro de 2025

O último filho da floresta antiga

 


Nasci sem testemunhas humanas.

Meu início foi silencioso, discreto, quase um acaso. Uma semente que caiu de uma mãe que já não existe, trazida pela boca de um macuco que descansou sobre a terra fofa e úmida da encosta suave onde hoje ficam as matas de Santa Rita do Passa Quatro. O pássaro deixou-me ali, entre folhas em decomposição, propícias para despertar a vida. Ninguém me plantou — mas todos os seres que viviam por aqui contribuíram para que eu germinasse. Assim funciona a floresta: cada gesto simples é parte de um grande e antigo acordo.

Quando rompi a casca e toquei a luz pela primeira vez, o mundo ao meu redor era imenso. Eu era pequeno demais para compreender, mas sentia — a floresta vibrava. A Mata Atlântica interiorana que me cercava era densa, úmida, diversa, feita de sons que se sobrepunham como camadas de tempo: bugios anunciando o amanhecer, pacas roçando folhas, arapongas martelando o ar, o vento arrastando perfumes de cipós floridos.


Os primeiros humanos que conheci


Muito antes dos colonizadores, vieram aqueles que me tratavam como parente.

Diziam-me — em sua língua que eu aprendi pela repetição — que eu era nhembopytyvo, aquele que guarda a sombra. Eram grupos indígenas dos troncos linguísticos Tupi-Guarani e Jê. Passavam pela mata, colhiam, caçavam com respeito e seguiam adiante. Eu os via como faíscas de movimento na imensidão verde.

Eles me tocavam às vezes. Alguns encostavam a palma da mão em meu tronco ainda jovem e murmuravam palavras que eu reconhecia mais pelo ritmo do que pelo sentido: agradecimentos, pedidos, saudação.

Nunca me cortaram. Árvore tão grande não era madeira: era espírito. Em suas cosmologias, cada ser vivo tinha dono, força, intenção — e eu era visto como abrigo de ancestrais, morada de animais protetores, vigia da mata. Eles me deixavam viver, e eu deixava que caminhassem sob minha copa.

Foram séculos assim.


A chegada daqueles que não me conheciam


Então vieram outros.

Primeiro, alguns homens em expedições de bandeiras. Passaram longe, cortando trilhas, arrastando cativos, trazendo fogo e febres. Depois, vieram os posseiros, os tropeiros, os que buscavam abrir espaço para pastos, e, finalmente, os fazendeiros de café.

A floresta que me cercava foi rareando, golpe a golpe.

Vi árvores irmãs tombarem. Vi clareiras surgirem onde antes havia sombra fresca. Vi o solo escuro tornar-se poeira. Os indígenas que antes caminhavam por aqui foram expulsos, perseguidos, mortos ou fugiram para o interior. A sua voz — que antes ecoava entre nós — tornou-se memória.

Eu fiquei.

Talvez porque era grande demais para ser cortado. Talvez porque minha madeira era difícil de extrair. Talvez porque, mesmo para os colonizadores, eu era espantoso — alto como poucos, antigo como nenhum deles podia imaginar.

Durante o ciclo do café, ouvi conversas sobre lucro, sacas, ferrovias, progresso. Alguns homens aproximaram-se de mim, calcularam minha altura, discutiram meu valor. Mas decidiram que eu ficaria. Era, para eles, espetáculo e não derrubada.

E assim, enquanto a paisagem ao redor se transformava em campos, cafezais e depois pastagens, eu permanecia como testemunha da floresta que havia sido.


O século XX e o quase fim


Na década em que caminhões substituíram carroças, ouvi motosserras ao longe. Elas se aproximaram mais do que eu gostaria de lembrar. A floresta atlântica, que outrora cobria o interior paulista, foi praticamente destruída, reduzida a fragmentos — menos de 15% do que existiu quando nasci.

Eu resisti porque alguns humanos decidiram que era hora de proteger o que restava. Naturalistas, professores, estudantes, moradores locais: todos vinham até mim como quem visita um avô muito velho. Tiravam fotos, subiam nas raízes, tocavam meu tronco com reverência. Foi nesse tempo que passei a ser chamado de Patriarca.

Nome bonito — mas também pesado. Carregar a memória de um bioma inteiro.





Sob a luz de 900 verões...


Agora, aos meus quase 900 anos, vejo um novo movimento surgir. Falam de mudanças climáticas, de perda de biodiversidade, de metas de carbono, de restauração de biomas. A COP-30 virou símbolo desse despertar. Ouço palavras como “transição ecológica”, “reflorestamento”, “corredores de biodiversidade”, “justiça climática”.

Para mim, que já vi nove séculos de idas e vindas, há algo de familiar nisso. Os povos indígenas que me tocaram séculos atrás já sabiam: nenhuma vida prospera sozinha. Cada semente precisa de solo, de sombra, de água, de cuidado — assim como cada povo precisa de floresta, de equilíbrio, de memória.

Às vezes, visitantes se encostam em mim, como faziam meus primeiros humanos, e contam que agora existe vontade de restaurar a Mata Atlântica, de proteger as áreas remanescentes, de plantar milhões de árvores.

Eu não sei se viverei para ver essa recuperação completa.

Mas sei que cada decisão tomada hoje — nas aldeias, nas cidades, nas conferências climáticas — decide se a floresta voltará a cantar como cantava no dia em que eu germinei.

Eu continuo aqui.

Guardando sombra.

Guardando histórias.

Guardando esperança.

sábado, 15 de novembro de 2025

Onde a história não avisou

 .


O primeiro som que Joaquim ouviu naquela manhã foi o canto rouco de um galo perdido entre telhados apertados, ecoando pelas vielas úmidas do Morro do Castelo, misturado ao barulho abafado de crianças correndo e alguém acendendo o fogareiro com lenha úmida. Um cheiro denso de maresia, peixe seco e fumaça tomava o ar — aquele cheiro que, com o tempo, os moradores deixavam de notar, mas que impregnava cada calça, cada lençol, cada prece sussurrada antes de dormir.

A casa era pequena, com paredes brancas que descascavam como pele queimada de sol. Rita, sua mulher, mexia um café ralo, enquanto os três filhos ainda sonolentos se revezavam na bacia d’água para lavar o rosto.

— O couro tá caro outra vez? — ela perguntou, sem olhar, mexendo o líquido como quem mexe destino.

— Couro, comida, remendo pra alma… tudo caro. — respondeu Joaquim, calçando as botas gastas cuja sola ele mesmo remendara três vezes.

Antes de sair, passou os dedos no cabelo da filha menor, que segurou sua mão com força, como se pedisse a garantia de que o mundo não mudaria naquele dia. Ele sorriu, mas carregava nos olhos o cansaço dos que já viram muitas promessas serem levadas pelo vento da baía.


Descida ao Centro — a cidade pulsando como uma forja

As vielas eram estreitas e escorregadias. Homens desciam com cestos, mulheres subiam com latas d’água, crianças corriam descalças como se o chão não tivesse pedras. No ar, pregões:

 

“Olha a banana-da-terra!”
“Água boa! Água de chafariz!”
“Quem quer doce de coco, que é hoje e não amanhã?”


Quando alcançou a Cidade Baixa, os sons se multiplicaram. Bondes puxados por burros passavam rangendo, carroças carregadas de carvão e lenha disputavam espaço com senhores de casaca que se equilibravam sobre calçadas estreitas e esburacadas. A pólvora das tropas, que se movimentavam desde cedo pelo Campo de Santana, dava à atmosfera um perfume de tensão que poucos entendiam, mas muitos sentiam.

Joaquim olhou de relance e viu oficiais se movimentando, bandeiras, gritos, cavalos.

— Mais um ensaio pra parada — murmurou, com a indiferença dos que não podiam perder o dia por curiosidades alheias.


A roda do trabalho — martelo, couro e confidências

Sentou-se próximo à Rua do Ouvidor, sua oficina improvisada. Estendeu a tábua, afiou a sovela, colocou o pedal de ferro na posição. O mundo podia tremer, mas sapatos sempre arrebentavam.

Seu primeiro cliente do dia, um funcionário público, aproximou-se reclamando:

— Parece que vai ter confusão hoje… ouvi dizer que político tá brigando com militar.

— Enquanto não brigarem com o sol, eu continuo vendo — respondeu Joaquim, prendendo o calçado no joelho.

Mais tarde, um carregador do porto, mãos enormes e postura curvada, largou uma bota quase destruída.

— Três mil réis pra deixar nova — disse Joaquim, examinando.

— Nova eu nunca fui, mestre… mas firme eu já tive vontade de ser — disse o homem, com um sorriso triste.

Enquanto costurava, Joaquim observava a vida:
cafés cheios, estudantes exaltados gesticulando; vendedores italianos com sotaque acelerado; lavadeiras rindo alto, equilibrando trouxas imensas como coroas improvisadas; meninos pobres tentando engraxar sapatos de quem fingia não vê-los.


História diante dos olhos — mas sem legenda

Pouco depois do meio-dia, o burburinho tomou forma. Uma corrente humana arrastou curiosos até o Largo do Paço. Joaquim, segurando ainda o martelinho, seguiu por instinto.

Viu oficiais, militares, discursos, ordens, cumprimentos, gestos triunfantes. Não entendeu nada, mas sentiu que havia algo maior do que desfile. O ar vibrava com palavras que ele não alcançava, mas que pareciam importantes demais para quem tinha as mãos manchadas de graxa e cola.

— Hoje é o dia! — gritou um rapaz alto com livros debaixo do braço. — O Império caiu! A República nasceu!

A multidão reagiu com aplausos tímidos, olhares perdidos, alguns vivas dispersos. Joaquim coçou o bigode e disse:

— Se a tal República me arrumar couro mais barato e barriga cheia pra esses moleques… eu bato palmas amanhã.

E retornou, porque o mundo, para quem vive do próprio suor, não tinha intervalo cerimonial.


Retorno ao morro — o silêncio depois do trovão

Na subida do fim da tarde, o morro parecia igual, como se o vento tivesse guardado a novidade num lugar onde fome e esperança já dividiam espaço demais. As pessoas comentavam apenas:

— Soldado gritou…
— Teve bandeira nova…
— Dizem que o Imperador vai embora…

Rita o recebeu preocupada:

— Foi guerra?

— Nada… só trocaram o nome do dono da chave — respondeu, lavando as mãos num pote com água suja e morna.

Naquela noite, enquanto o morro se calava sob o céu úmido, Joaquim encostou a cabeça e pensou:

 

“O governo muda lá embaixo, mas o couro estraga aqui em cima. Amanhã tem serviço.”


E adormeceu, sem saber que a história o tinha tocado no ombro e seguido adiante — sem pedir licença.


📷: Rua Primeiro de Março, Rio de Janeiro, capital do Brasil, 1889.

sexta-feira, 7 de novembro de 2025

🌹 "Janja é uma ruptura simbólica"

 


Por Beta Bastos


Há algo de profundamente político no modo como Janja existe.

Ela não pediu licença para ser, simplesmente é.

E isso, em um país que ainda tenta enquadrar as mulheres em papéis silenciosos, é um ato revolucionário.


Janja não é apenas a companheira de um presidente.

É uma mulher que reivindica o direito de estar onde sempre disseram que não era lugar para nós, no centro das decisões, no gesto que acolhe e também no gesto que enfrenta.

Ela devolve à política uma dimensão esquecida, a da afetividade como força transformadora.


Enquanto muitos associam poder à frieza, Janja o resignifica com empatia.

Ela fala de cultura, de meio ambiente, de igualdade e de memória.

Temas que, na boca de uma mulher, ainda são tratados como menores.

Mas é justamente por essa via que ela desmonta a velha lógica da dominação e mostra que governar também é cuidar, preservar e lembrar.


Por isso a atacam.

Porque uma mulher que ocupa o espaço público sem pedir desculpas por ser inteira, política, sensível, lúcida e amorosa, é insuportável para quem ainda acredita que o poder é masculino.


Janja é o incômodo necessário.

É o retrato de uma nova ética do feminino na política, a que não se curva, mas também não endurece para existir."

quarta-feira, 5 de novembro de 2025

A Dor Invisível – O Drama dos que Carregam o Peso da Depressão

 


Autor anônimo


Há dores que gritam, e há dores que se calam. A depressão é uma dessas dores silenciosas, que corrói por dentro enquanto o mundo, do lado de fora, segue sem perceber. É um sofrimento que não deixa marcas na pele, mas fere a alma de forma profunda, minando o ânimo, o apetite, o sono, a vontade de existir. Para muitos, é como carregar um corpo pesado demais, uma sombra constante que impede de seguir o ritmo dos outros.

A sociedade, ainda hoje, tem dificuldade em compreender que a depressão não é fraqueza, preguiça ou falta de fé. É uma doença — séria, incapacitante, e por vezes mortal. Mas a incompreensão é cruel. Muitos pacientes escutam conselhos que doem mais do que ajudam: “levanta e vai trabalhar”, “você tem tudo, não devia estar triste”, “isso é falta de Deus”. O que falta, na verdade, é empatia. O que falta é entender que o deprimido não escolhe estar assim, e que sair do abismo não depende apenas de vontade.

No sistema público de saúde, o cenário agrava o desespero. Consultas com psiquiatras são escassas, demoradas, e muitas vezes superficiais. Há quem espere meses por uma vaga, quem desista no meio do caminho, quem seja tratado como um número. O tratamento adequado exige acompanhamento contínuo, psicoterapia, ajustes de medicação — mas a estrutura pública raramente oferece esse cuidado integral. Muitos acabam dependendo unicamente de comprimidos, distribuídos de forma irregular e sem o devido acompanhamento, o que transforma o remédio em uma âncora de sobrevivência, e não em um caminho real de cura.

Essa dependência medicamentosa, aliada à instabilidade emocional, torna quase impossível a reinserção no mercado de trabalho. Empresas evitam contratar quem carrega um histórico psiquiátrico, temendo faltas, crises ou baixa produtividade. O preconceito é disfarçado de critérios técnicos. O resultado é a exclusão — o deprimido se vê sem renda, sem autonomia, sem perspectiva. Quando busca auxílio do Estado, enfrenta um outro tipo de sofrimento: a frieza burocrática. O processo para conseguir um benefício previdenciário é longo, desgastante e cheio de obstáculos. Perícias que duvidam da dor, exigências que humilham, e um sistema que, em vez de acolher, desconfia.

Nem mesmo os espaços de fé, que deveriam ser refúgios, estão isentos de incompreensão. Alguns líderes religiosos, movidos por dogmas, insistem em ver a depressão como sinal de fraqueza espiritual, castigo divino ou falta de oração. Esse tipo de julgamento, travestido de zelo, apenas aprofunda a culpa e o isolamento. O fiel, já fragilizado, passa a se sentir indigno de Deus e da própria vida — uma ferida a mais em quem já sangra por dentro.

A dor humana, quando invisível, é facilmente ignorada. E a depressão é, talvez, o maior exemplo disso. Enquanto não houver um olhar mais humano, mais paciente e menos moralista, continuaremos perdendo vidas — lentamente, silenciosamente, todos os dias.

O que essas pessoas pedem não é piedade. É compreensão, acolhimento e dignidade. Que possam ser vistas não como um fardo, mas como seres humanos que lutam — todos os dias — contra um inimigo interno que poucos conseguem entender.

Porque, no fim, o maior remédio que ainda falta é o mais simples de todos: o olhar humano sobre a dor do outro.


Para concluir a postagem, feita por um autor anônimo que se utilizou da IA para expressar o seu drama e de muita gente, gostaria deixar em aberto a seguinte pergunta: o que pode ser feito para efetivamente ajudarmos as pessoas com depressão?

domingo, 2 de novembro de 2025

Denúncia comprova necessidade de ataque ao CV

 

EDITORIAL DO JORNAL O GLOBO DE 02/11/25


São estarrecedores os métodos do Comando Vermelho (CV) para manter o controle do complexo de favelas do Alemão e da Penha. A denúncia do Ministério Público que serviu de base à megaoperação das polícias do Rio na última terça-feira é repleta de revelações sobre práticas repugnantes da facção. Mensagens interceptadas demonstram que o CV montou uma estrutura complexa de domínio, altamente hierarquizada e militarizada, levada a cabo por meio de tortura, execuções sumárias determinadas por um “tribunal” do tráfico e até um departamento para cuidar de propinas pagas a agentes da lei. Não há como nenhuma sociedade civilizada tolerar esse abominável estado de exceção.

Sessões de tortura são usadas para punir comparsas e moradores que não seguem as regras impostas pela facção. Num dos casos citados, uma mulher é mergulhada numa banheira de gelo, sob a alegação de ter brigado durante um baile funk. Noutro episódio, um homem amordaçado e algemado, sem camisa, é arrastado por um carro. Enquanto implora por perdão, um dos algozes debocha de seu sofrimento. Num terceiro, um traficante diz ter dado uma “massagem” na vítima e pergunta se ela queria morrer logo. Perversidades chegam a ser filmadas, tamanho o sentimento de impunidade.

Surpreende a organização da quadrilha. De acordo com a denúncia, havia funções como “general de guerra”, “juiz do tribunal do tráfico” e especialista em propinas pagas a policiais. Um dos bandidos, que escapou ao cerco policial, era responsável por definir estratégias de enfrentamento à polícia, incluindo monitoramento das tropas com equipamentos sofisticados. Um dos chefes da facção ficava encarregado de coordenar os “soldados” do tráfico e montar as escalas de plantão. Também administrava eventos como bailes funk. O CV mantém regras rígidas para proteger os chefes do tráfico em locais cercados de barricadas e dotados de armamento pesado, que dificultam as operações policiais e a prisão dos bandidos.

A denúncia do MP deixa clara a necessidade da operação para interromper o domínio cruel do CV. Não se pode admitir que grupos sanguinários sequestrem extensões relevantes do território e instalem nesses enclaves um Estado paralelo, onde não vigoram a Constituição e as leis que regem os demais brasileiros. Autoridades têm obrigação de reprimir essas organizações criminosas. Mas é fundamental que essas ações sejam permanentes e não fiquem restritas às incursões policiais. Precisam ser seguidas de policiamento de rotina e serviços como educação, saúde, transporte, urbanização e moradia, como mostram todas as experiências internacionais bem-sucedidas para vencer o crime organizado.

A demanda por serviços públicos nas comunidades cariocas é enorme. Quando atendida pelo poder público, a população responde com avidez. Basta lembrar que, das cerca de 600 mil vagas oferecidas nas escolas municipais, 248 mil (41%) estão localizadas em áreas vulneráveis, em geral sob o comando de facções ou milícias — e apenas 13 mil permanecem desocupadas. Proporcionalmente, a demanda nessas áreas é maior que nas demais regiões da cidade (favelas concentram 1,3 milhão de cariocas, ou 22% da população). Não há indicador mais persuasivo de que a melhor forma de combater a tirania das facções é levar ainda mais educação às áreas conflagradas, dando outra perspectiva de vida às crianças.

O Jardim de Dois Caminhos

Rodrigo Tanaka, bisneto de japoneses nascido em São Paulo, desembarcou no aeroporto de Narita com o coração apertado e a Bíblia debaixo do b...