"Questões acerca da morte" (1ª Parte, por um viés religioso)

A filosofia, ao contrário do que muitos imaginam, não deve ser complicada, ao invés disso, ela deve ser o mais objetiva possível, sem palavras difíceis que muita das vezes estão ali, presentes nos artigos filosóficos apenas para dar um ar de intelectualidade ao autor. Costumo escrever muito sobre morte, o que me rendeu um rótulo de pessimista, mórbido, desiludido ou decepcionado com a vida, ou seja, uma pessoa propensa ao suicídio. Pois bem, que pensem o que quiserem. Não me importo (muito) com esses detalhes. Enquanto vão me tachando de frustrado eu vou vivendo e sorvendo cada minuto da minha existência como se não fosse haver outros mais. 

Muitos dizem (eu inclusive) que a morte faz parte da vida, o que não soa muito correto se formos ser rigorosos com os termos. Ninguém que ainda esteja vivo, (eu, você que está lendo, todos nós) experimentou de fato o que é morrer. A morte é o fim de um processo orgânico, que ao cessar de pulsar como vida, se acaba, se extingue. Portanto, a morte faz parte do “além-vida”, a morte pertence apenas ao mundo dos mortos. O problema é que o mundo dos mortos faz parte do mundo dos vivos, seja no culto aos mortos, nos cemitérios, nos rituais fúnebres das tantas religiões, na poesia, na literatura, na saudade que fica ao perdermos um ente querido e na “esperança de um dia o encontrarmos novamente na eternidade”. É aqui que entra a Filosofia.

Se a morte não faz parte da vida, pelo menos ela deve fazer parte do pensamento dos que estão vivos. A consciência que nós “sapiens” temos da morte nos persegue e nos obriga a tomarmos uma posição, mesmo que esta seja fugir de sua lembrança inventando mil desculpas e sublimações. Mas já os que possuem fé, ou acreditam na continuação desta vida, concebem em suas cabeças, um paraíso ou um inferno, um nirvana, um renascer, ou seja, morrer de forma alguma é o fim para essas pessoas. Platão e Sócrates acreditavam nisso, portanto, filosofaram sobre a Vida e a Morte. Já Nietzsche e Sartre não acreditavam, mas também filosofaram. E se para Cícero, “Filosofar é aprender a morrer”, poderíamos reescrever esta frase e dizer: “Filosofar é aprender a viver”.

Todos os seres vivos morrem. Eu disse Todos! Esta é uma lei natural e universal a que ninguém escapa, logo, o ser humano, como animal, também morre. É certo que os avanços na medicina ou na engenharia genética andam prometendo certa “imortalidade” para em breve. Mas não sabemos quando, nem como e sequer, se atingiremos este sonho. Mas só o homem tem consciência de que vai morrer. E por este motivo, já antes de nossa morte, podemos senti-la, pensá-la, vivê-la, o que não deixa de ser um paradoxo. O fato é que, dessa consciência que temos de que vamos morrer, surge uma gama de possibilidades e consequências históricas, culturais, sociais e filosóficas sobre a significação humana da morte. Daí surgiu as grandes religiões, com a promessa de que o homem não morre para sempre, de que ele sobreviverá à morte física. Sejam eles os Cristãos, os Muçulmanos, os Judeus ou os Budistas.

Mas embora tantos prometam uma vida após a morte, a ressurreição, o renascer, o reencarnar-se, o nirvana, ainda persiste o problema de que cada ser humano terá que enfrentar sozinhos a “travessia com o barqueiro para o outro lado”. Mesmo com o consolo das crenças e das religiões, o medo de deixar a vida continua assombrando a humanidade, provocando calafrios, fugas, alienações, neuroses e orações. E ainda que as religiões prometam a salvação eterna, muitos de seus fiéis abarrotam as igrejas com seus corpos mortais adoecidos em busca de um milagre, curas físicas ou espirituais, prosperidade financeira, o retorno de um amor perdido, ou seja, a felicidade aqui e agora, o mais longe possível da famigerada morte. Ninguém que morrer, nem tampouco falar da morte... da sua morte. O medo da morte é um dos maiores incentivos para a atividade humana, atividade esta, em boa parte destinada a evitar a chegada da inevitável morte, buscando inutilmente vencê-la, enganando-se com a negação de que ela seja o destino final do homem.

Se olharmos com atenção para as diversas civilizações e povos da história da humanidade veremos que todos tiveram e têm uma relação ritual e simbólica com a presença da morte, embora, possamos encontrar sociedades que lidem de diferentes formas com a mesma. Desde que se criaram as religiões e os deuses, os rituais criados pelo homem nada mais são do que formas de se relacionarem, de “negociarem” com o sagrado, com o sobrenatural, o mistério divino, tendo como anseio galgarem uma vida que supostamente se estenderia para além desta. Assim o homem buscou, busca e continuará buscando por muito tempo ainda a imortalidade e o eterno. Foi assim que as civilizações antigas inventaram suas crenças absurdas, seus rituais grotescos (a começar pela feitiçaria).

Certamente os feiticeiros foram os primeiros a tentar controlar, pela magia, as forças, sejam elas do bem ou do mal, em benefício do próprio homem e suas necessidades de sobrevivência histórica ou para além dela. Depois deles vieram os sacerdotes, os profetas, os enviados por  Deus ou pelos deuses, tentando mostrar assim que, mesmo sem experimentar literalmente a morte era possível um prelúdio de como seria o mundo dos espíritos, de como os heróis mitológicos iam e vinham do reino dos mortos, vitoriosos, carregando a cabeça de seus inimigos, ou amarrando as serpentes infernais em cativeiros no submundo. Assim foram os deuses do Egito Antigo, Ísis, Osíris, Néftis, entre tantos outros. A crença da imortalidade da alma, que certamente inspirou a fé judaica, marcou toda a milenar cultura egípcia, cujas pirâmides que até hoje erguem-se imponentes nas areias do deserto do Saara, nada mais são do que túmulos de seus reis, guardando sarcófagos com suas múmias embalsamadas e cheias de tesouros, esperando a volta de suas almas do mundo dos mortos.

Na Grécia, os cultos a Orfeu e a Dionísio e os mistérios de Átis e de Adônis possuem a mesma essência, a saber, a morte e o renascimento. Por aí podemos avaliar que, enterrando ou cremando seus mortos, a humanidade sempre revelou e continua a revelar essa crença ou, como alguns gostam de chamar, fé, na eternidade da vida para além da morte.
 
Continua...

Edson Moura

Comentários

Prezado EDSON,

Primeiramente quero parabenizá-lo pelo excelente tema que propôs para nos informarmos e debatermos.

Penso que a consciência da morte, por trazer um choque de realidade, seja algo que pode nos ajudar a ter melhor qualidade de vida quando nos dispomos a ressignificar as escolhas que fazemos, nossos planejamentos futuros e valores cultivados. Por mais que alguém acredite numa vida futura no além-túmulo,isto não invalida a consciência que se deve ter quanto a esta limitada existência aqui, o que vai nos ensinar sobre desapegarmos e coisas improdutivas.
Certamente que a sua mensagem, Edson, trás muitos pontos a serem debatidos, sejam ou não pertinentes ao assunto. Senão vejamos:


A filosofia, ao contrário do que muitos imaginam, não deve ser complicada, ao invés disso, ela deve ser o mais objetiva possível, sem palavras difíceis que muita das vezes estão ali, presentes nos artigos filosóficos apenas para dar um ar de intelectualidade ao autor. Costumo escrever muito sobre morte, o que me rendeu um rótulo de pessimista, mórbido, desiludido ou decepcionado com a vida, ou seja, uma pessoa propensa ao suicídio. Pois bem, que pensem o que quiserem. Não me importo (muito) com esses detalhes. Enquanto vão me tachando de frustrado eu vou vivendo e sorvendo cada minuto da minha existência como se não fosse haver outros mais.


Concordo plenamente! Tanto com a importância da Filosofia ser comunicada popularmente, livre de um intelectualismo hipócrita, como com a saudável reflexão que o homem precisa fazer sobre a morte. E acho que a nossa sociedade atual, pelo menos da segunda metade do século XX pra cá, pode ter cometido grande erro em negar ou afastar a morte do cotidiano das pessoas. Talvez porque seja algo contrário ao consumismo ou porque realmente não interesse ao homem moderno encarar o assunto, mas o certo é que estamos educando seres imaturos.

Recordo que, em minha tenra infância, não me levaram para os velórios. Isto só mudou quando eu já estava na pré-adolescência e morando com meu avô paterno em Juiz de Fora. Porém, nem no enterro de meu pai (1983) eu tive o direito de ir.

Considero que, na nossa cultura, as crianças deveriam desde novas ter um contato com os funerais e aprenderem que todos os seres vivos um dia morrem pois esta consciência ajudaria a nos humanizar, tornando-nos mais compreensivos, solidários com a dor do outro e conscientes das nossas limitações.
Inegavelmente, mano, a morte faz parte da vida sendo, pois, a outra face desta. É algo com o qual todos lidamos. Tanto é que perdemos pessoas próximas a nós, mudamos de estado civil, tornamo-nos órfãos ou, o que é pior, desfilhados. Precisamos construir cemitérios ou crematórios. Temos que abrir processos de inventário dos bens deixados pelo falecido, legislar acerca disto, termos sucessores para os ocupantes de cargos que falecem no exercício destes, removermos corpos, investigarmos causas, cuidarmos da saúde, etc. E aí pouco importa qual era a concepção de cada um, se acreditava ou não na continuação da consciência fora do corpo ou ainda na ideia da reencarnação visto que o nossos sistema jurídico precisará ser materialista para não cairmos nos erros do subjetivismo. E obviamente vamos ter que também filosofar dentro dessa mesma base.

Mas é certo que há uma diferença enorme entre os que acreditam ou não numa vida após a dessoma ou morte física. Pelo menos em termos de significados e escolhas que são feitas. Pois um crente vai "plantar" boas ações mesmo se não vier a "colhê-las" aqui de modo que tal pessoa continua ainda assim ainda que numa idade avançada, vivendo as últimas horas aqui. Pois quer se acredite em reencarnação, ressurreição ou céu, tal indivíduo se considerará de alguma maneira participante das coisas terrenas numa outra esfera mesmo se ficar fisicamente separado aguardando um encontro com o outro lá ou um retorno à encarnação sem a consciência do que teria vivido na ´serie existencial anterior.

Já o materialista, que espera o fim de tudo com a morte física, inclusive da própria consciência, no máximo se sentirá responsável em querer deixar para as futuras gerações um bom ensino e a devolução daquilo que utilizou. Ele tanto poderá agir egoisticamente quanto de maneira solidária com as futuras gerações e os que permanecerão habitando o planeta depois da sua partida. Porém, acho mais difícil educar pessoas materialistas para serem responsáveis nesse sentido, a fim de que não vejam como a si próprios como o centro do Universo e se lembrem de deixar coisas boas para a posteridade como um dever ético de todos nós.

Mas embora tantos prometam uma vida após a morte, a ressurreição, o renascer, o reencarnar-se, o nirvana, ainda persiste o problema de que cada ser humano terá que enfrentar sozinhos a “travessia com o barqueiro para o outro lado”. Mesmo com o consolo das crenças e das religiões, o medo de deixar a vida continua assombrando a humanidade, provocando calafrios, fugas, alienações, neuroses e orações. E ainda que as religiões prometam a salvação eterna, muitos de seus fiéis abarrotam as igrejas com seus corpos mortais adoecidos em busca de um milagre, curas físicas ou espirituais, prosperidade financeira, o retorno de um amor perdido, ou seja, a felicidade aqui e agora, o mais longe possível da famigerada morte. Ninguém que morrer, nem tampouco falar da morte... da sua morte. O medo da morte é um dos maiores incentivos para a atividade humana, atividade esta, em boa parte destinada a evitar a chegada da inevitável morte, buscando inutilmente vencê-la, enganando-se com a negação de que ela seja o destino final do homem.


Pois é, Edson. Esse medo da morte pode não ser universal e os animais não têm essa consciência, muito embora haja neles o instinto de auto-preservação que temos também.

Só que no nosso caso, mano, existem os valores culturais que vão suavizar ou atormentar essas preocupações quanto à partida. Por exemplo, a ideia de que haverá um inferno de chamas, uma punição no além para pecadores, descrentes ou ainda uma relação de causa e efeito no que diz respeito ao "karma", faz com que muita gente passe a vida se angustiando por supostos castigos. Mesmo a reencarnação aqui num planeta tido como de sofrimento pelos espíritas não deixa de ser parte de um inferno e que, embora não seja tão apavorante quanto ser lançado eternamente numa fornalha ardente, significa a repetição ou punição pelo que foi feito aqui com prováveis acidentes, perdas e dores na encarnação seguinte.

Entretanto, as religiões prometem também suas recompensas e benefícios para depois da morte, o qual pode ser ou não visto como resultado das condutas aqui praticadas. Seja o céu ou a possibilidade de reencarnar numa futura existência menos sofrida, ainda assim o homem irá temer passar pela morte.

Primeiro que acho difícil alguém ter plena certeza de continuidade fora do corpo porque sempre restará alguma dúvida se tudo para ela não acabará repentinamente.

Segundo é que existe o temor da dor física a ser suportada até o último suspiro de maneira que a morte acaba sendo sentida como a pior das dores. Algo que só para quem está no auge do sofrimento, a ponto de se alienar da esperança, é que, excepcionalmente, será um acontecimento bem vindo. como se o indivíduo fosse procurar vida ou alívio na morte.

Todavia, o fato de pessoas procurarem na metafísica uma cura e ou qualidade de vida aqui pode significar que também temos a necessidade de passarmos uma existência melhor. Pois até quem possui a consciência da morte e da finitude em relação a esta série existencial, digamos assim, não quer viver miseravelmente. Até na velhice queremos ficar tranquilos, sem dores, acompanhados pelos que amamos, com uma suficiência de recursos financeiros para as necessidades básicas e sendo tratados dignamente.

Por outro lado, para quem não possuiu grandes bens e felicidades nesta vida, a promessa de uma vida melhor no pós-morte acaba se tornando como um grande consolo capaz de apaziguar frustrações controlando as insatisfações destrutivas que a pessoa possa manifestar. E isto inibe muitas revoltas promovendo um conformismo na sociedade que mantem muitos cooperando com o sistema no qual vivem.

Acrescente-se que o medo da morte evita que muitos pratiquem condutas ruins ainda que seja também causador de pânicos. Pois, se ao mesmo tempo a pessoa evita matar porque teme responder pelos seus atos num "juízo final", se ela se encontra ameaçada de morrer é capaz de sair pisoteando ou atropelando quem estiver na sua frente. Por exemplo, pense num incêndio num ambiente público em que elementos mais afobados começam a empurrar quem estiver na sua frente. Tipo, se o indivíduo encontra-se numa boate pegando fogo e para chegar rapidamente na saída ele pisoteia até na cabeça de uma criança desmaiada no chão.
Finalmente, quanto à maneira como as civilizações e as religiões sempre lidaram com a morte, sendo certo que a tradição do culto aos mortos é bem antiga e vem lá da pré-história, tornando-se comum a diversos povos, podem os ver aí como uma leitura que o homem procurou fazer desse acontecimento.

Pense no seguinte, Edson. Quando novo, a pessoa é educada por seus pais, avós, mestres e sacerdotes. São os entes que irão ensiná-lo a viver mas, quando o deixarem certamente vão fazer falta. Então, na angústia de tentar resolver os problemas por si mesmas, as pessoas aqui sobreviventes acabam querendo uma comunicação com os que já foram.

Por outro lado, elas sentem a necessidade de gratidão ou de preservação da cultura em manterem viva a memória daquele membro do grupo que partiu. E aí a homenagem como alguém ter sido um "santo" que servirá de arquétipo para as gerações seguintes faz sentido para uma determinada sociedade porque cria tradições e dá raízes a um povo.

Neste sentido, até entre ateus surge essa necessidade de construção de arquétipos. Pois não foi por menos que, na ex-URSS, um Estado declaradamente ateu, tentaram imortalizar Lênin que foi o líder da Revolução Russa (1917). Ou seja, Stálin e outros presidentes soviéticos que o sucederam acreditaram na importância de manter viva na memória do povo a figura de alguém que contribuiu para por fim ao czarismo e inaugurar a "ditadura do proletariado" tal como a nossa cultura faz com os santos e profetas.

Na Roma Antiga, cada família tinha o seu próprio culto do lar e isto era uma maneira de lidarem com as perdas encarando os desafios do futuro sem mais a presença física do ente querido.

Enfim, para tentar RESUMIR, trata-se de uma maneira de nos posicionarmos culturalmente para suprir as ausências que vão surgindo. Principalmente das pessoas que ganharam maior importância entre nós tornando-se faróis da nossa "navegação".
Vou compartilhar alo que acredito ter a ver com o debate sobre a nossa responsabilidade com a continuidade da vida na Terra após a morte:

Existe um ditado árabe que diz: “Quem planta tâmaras, não colhe tâmaras!” Isso porque, antigamente, as tamareiras levavam de 80 a 100 anos para produzir os primeiros frutos. Atualmente, com as técnicas de produção modernas, esse tempo é bastante reduzido, porém o ditado é antigo e sábio.

Conta-se que certa vez um senhor de idade avançada plantava tâmaras no deserto quando um jovem o abordou perguntando: “Mas por que o senhor perde tempo plantando o que não vai colher?”. O senhor virou a cabeça e, calmamente, respondeu: “Se todos pensassem como você, ninguém colheria tâmaras”. Ou seja, não importa se você vai colher, o que importa é o que você vai deixar... Cultive, construa e plante ações que não sejam apenas para você, mas que possam servir para todos e para o futuro.

Nossas ações hoje, refletem no futuro