Justiça e Perdão


Outro dia um amigo emprestou-me um filme muito interessante que tinha como tema a vingança.Tudo bem que a produção era daquelas baratas, mas ao final dele, fiquei pensativo a respeito do tema. A história era de uma escritora que ao isolar-se em uma cidadezinha para escrever mais um de seus romances, acabou sendo violentada por quatro jovens e até pelo xerife da cidade. Após sobreviver ao ataque, ela retorna para vingar-se, coisa que faz com requintes de crueldade. Entre cortar pênis, e introduzir espingardas em ânus, ou afogar um deles em soda cáustica ela se satisfaz e sente-se bem com a sensação de dever cumprido.

O interessante é que logo pela manhã eu presenciei uma cena que me remeteu ao filme. Um rapaz muito mal educado começou a agredir verbalmente o motorista do ônibus. Chamou-o de chifrudo, velho lerdo, “viado”, e outros adjetivos que julgo desnecessário citar aqui. O motorista aceitou àquelas provocações como um perfeito cavalheiro. Pensei comigo: ele deve ser um daqueles crentes que aceitam tudo calado, pois o Senhor é seu juiz. Eu particularmente já estava “espumando de raiva”, mas me controlava, afinal de contas, eu também aprendi que não se deve pagar o mal com mal.

Ao chegarmos na av. Cidade Jardim, um dos pontos mais lotados da zona leste de São Paulo, fui surpreendido com a atitude do motorista. Ele arrastava o ônibus bem devagarinho, ao tempo em que ia chamando o rapaz de corno, dizendo que a cara dele era de chifrudo, que a mulher dele provavelmente estaria dando pra outro enquanto ele saía pra trabalhar. Chamava-o de “pião”, dizia que enquanto ele (o rapaz) pegava um ônibus lotado para chegar ao trabalho, seu carro zero estava estacionado na garagem da empresa. Acreditem, cheguei a sentir uma pontinha de pena do jovem (mas passou rápido). O motorista foi cruel em sua vingança. Premeditou tudo e foi muito feliz em sua desforra.

Pergunto-me: estaria certo o motorista ao buscar justiça? A atitude dele pode ser recriminada, tendo em vista que devemos evitar discussões nos dias atuais? Ou será que ele deveria ter ido além e ter dado uma boa de uma surra naquele jovem desaforado? Bom, particularmente acho que ele deveria sim, ter descido do ônibus e socado aquele rapaz, só para ele aprender a respeitar aos mais velhos. Só assim o motorista conseguiria se impor frente ao seu adversário. A coragem de enfrentar as dificuldades e a busca por justiça não são qualidades apreciadas por Deus? Não! Este é discurso islâmico.

É evidente que o discurso islâmico de posiciona contrário ao discurso cristão. Enquanto para o Islã o “pecado” precisa ter uma punição do mesmo peso e natureza, no cristianismo, a orientação é desconsiderar a injustiça cometida. Jesus delega a Deus a função de fazer justiça e obriga o injustiçado a perdoar aquele que o injustiçara. (..e perdoai [Deus] as nossas dividas [injustiças, pecados], assim como nós perdoamos nossos devedores Mt 6:12). Ao relembrar o episódio no ônibus, não consigo evitar a frase que me vêm à mente: “Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal, mas, se alguém lhe bater na face direita, oferece-lhe também a outra”.

Depois de muito refletir, cheguei à conclusão de que “perdão e justiça” são valores éticos inconciliáveis, antagônicos, impraticáveis dentro de um mesmo contexto. O mesmo se dá aos valores “igualdade e liberdade”, ou seja, para se obter um estado de igualdade de condições e de oportunidade entre pessoas de um mesmo grupo ou sociedade, é preciso sacrificar a liberdade de se fazer o que deseja. Em grupos e sociedades liberais, como a sociedade de mercado, por exemplo, a liberdade de agir é a mola propulsora do progresso, mas, a desigualdade social acaba sendo um efeito colateral aceitável. O lema da revolução francesa até que soa bonito... “Liberdade e Igualdade”... mas, é totalmente impraticável.

É preciso fazer valer os nossos direitos, e quando esses direitos nos pedem para reagirmos a uma agressão com outra agressão, por que não? Poxa vida! Até quando viveremos na mediocridade? Até quando seremos capachos de nossos detratores, só porque Jesus falou que assim deveria ser? A morte de Jesus e de Pedro na cruz, sem que ambos reagissem contra seus inimigos, nos mostra o extremo da passividade e da tolerância em relação à injustiça. Provavelmente o conflito entre justiça e perdão seja o causador do grande mal-estar nas sociedades de orientação cristã.

O “bom religioso”, obediente às leis bíblicas e civis, vive em sociedade sendo explorado pelo seu patrão capitalista, pelo banco que lhe empresta dinheiro a 13% ao mês enquanto só paga 0,5% na poupança, pelos políticos que lhe tomam dinheiro com os impostos e não lhe devolvem em saúde, educação e segurança e transporte decente conforme nos é garantido pela Constituição, entre outras impunidades para as quais não tomamos atitude em nome do perdão que está arraigado em nossos subconscientes. Nossa ira inconsciente gerada pelo desejo voraz de justiça esbarra em uma orientação moral, da qual muitas vezes não temos consciência, que nos impede de tomar uma atitude.

Não me envergonho de escrever essas coisas, mas me envergonho por ter permanecido passivo por tanto tempo, estoico, contente com as agruras, e feliz por saber que um dia Deus me acolheria e todo sofrimento então teria fim. Quanto tempo eu perdi, e quantas lágrimas minhas poderia ter evitado se tivesse provado o sabor incomensurável da “doce vingança”.

Edson Moura

Comentários

Ela, amigo!

Esse é um tema bem interessante sobre o qual precisamos debater até porque o fato de perdoarmos alguém não significa que nós (e a sociedade) iremos deixar de lutar por justiça diante das violações cometidas.

Todavia, sem precisar entrar na discussão sobre os valores do cristianismo ou da cultura islâmica (pretendo falar disso depois), considero erra da vingança privada em que a vítima ou seus familiares tentam praticar justiça com as próprias mãos, o que, além de gerar um caos social,dá marge para que ocorram retribuições desproporcionais. Isto porque falta bom senso às pessoas, sobretudo a quem sofreu a violação, para saber aplicar o princípio do talião: "olho por olho e dente por dente". Ou seja, a vítima acaba se tornando um algoz e comete erros muito piores.

É certo que o Poder Judiciário e o sistema penal brasileiro muitas vezes atua de modo bem insatisfatório. Porém, não sou contra que o Estado continue detendo o monopólio da Justiça. E, neste caso, devemos buscar o seu aperfeiçoamento sem que outros princípios fundamentais da Constituição sejam ofendidos como o contraditório e a ampla defesa, a não adoção de penas cruéis, o direito de recorrer, assim como a conversão da prisão em serviços comunitários para casos mais brandos tendo em vista o caráter sócio-educativo da medida.

Espere que ainda escreverei mais.

Em relação ao perdão, considero-o importantíssimo para que a própria vítima consiga lidar melhor com o seu sofrimento. Entendo que ela não deverá deixar de brigar por justiça dentro do Direito e, sendo algo grave, é válido prosseguir com o processo de ação penal privada ou um pedido de reparação de danos na esfera cível. Até mesmo por razões de cidadania para desestimular outros comportamentos ilícitos na sociedade.

Deve fazer uns dez anos, representei contra um rapaz que, na cidade onde eu morava, fazia pegas de carro. Não o conhecia e nem fiz questão de procurá-lo. Mas ao saber que o mesmo fazia apologia a algo ilícito, mantendo no finado Orkut uma página sobre essa prática ilegal capaz de matar dolosamente alguém (pois o agente assume o resultado), não me arrependo de ter tomado a atitude. E, por mais que o tenha prejudicado, a ponto de ter sido obrigado a celebrar um acordo com o MP no Juizado Criminal, acredito que foi pelo bem dele e de muitos a minha atitude. Talvez eu tenha evitado outros pegas de carro na cidade que poderiam ter acontecido, caso eu não houvesse formalizado a tal denúncia.

Claro que, no meu caso, não houve uma dor porque não fui vítima de nenhum crime de trânsito. Porém, sei o quanto deve ser difícil para alguém que sofreu qualquer abuso nas mãos de um delinquente e não vê a justiça acontecer por causa da corrupção do sistema e da esperteza do agente que consegue ficar impune.

Mais do que nunca o perdão vai ser necessário nessas horas. Até porque a vítima poderá nunca ficar satisfeita com o resultado de uma punição achando que o agressor sempre deve sofrer mais e mais de modo que o seu descontrole causando gerando maldades ainda piores tipo a mulher do filme.
Agora falando dos valores das religiões, você falou do cristianismo e fez menção ao islamismo tendo esquecido do judaísmo.

Bem, eu diria inicialmente que, no Islã, pode haver diversos entendimentos sobre como alcançar a justiça sendo a paciência uma virtude da vítima que, ao invés de retribuir impensadamente, busca meios para que haja a paga do mal. Aliás, há entre eles também o perdão e aí devo admitir o fato de que me faltam conhecimentos mais aprofundados acerca dessa cultura estrangeira.

Sei, todavia, que, no judaísmo, a busca da justiça não é rejeitada moralmente. Aliás, a regra mesopotâmica do "olho por olho" é trabalhada na Torá e os sábios do Talmude debatem a respeito dela. Pois, se por exemplo, um deficiente que enxerga por um olho só lhe causa um acidente e lhe tira a visão de apenas um dos seus olhos, você não estará sendo desproporcional caso resolva lhe deixar totalmente cego? Essas lacunas da Torá são bem exploradas pelos antigos mestres judaicos em seus diálogos e vale a pena conhecer (depois que alguém já leu a legislação mosaica algumas vezes e o Antigo Testamento, eu recomendo o Talmude).

Mas falemos do cristianismo que é a base das nossas concepções no Ocidente. Pois de fato o cristão tem uma resistência a tomar qualquer atitude contra o agressor. E, se assim faz, sente-se em má consciência como se estivesse pecando, sendo imperfeito ou se afastando da orientação do Mestre. Só que isso, a meu ver, é mal compreendido tendo em vista a maneira com o muitos ainda leem Jesus dando a ele um status de legislador e detentor da última palavra, como na verdade ele só buscou dialogar fazendo as pessoas refletirem e repensarem os conceitos da tradição tendo em vista princípios superiores.

Mas vamos lá. Você citou o Pai Nosso, porém, antes, vou até Paulo onde o apóstolo recomenda aos coríntios a não procurarem o tribunal humano quando tiverem contenda entre si.

Pois bem. Paulo não exclui a busca da justiça entre irmãos. Antes, ele sugere que a Igreja tenha uma espécie de conselho de ética para disciplinar internamente condutas contrárias à moral do grupo. E aí se um irmão causa dano a outro, não deveriam os sábios da congregação julgar a causa? Por favor, permita-me citar o texto:


"Se algum de vocês tem queixa contra outro irmão, como ousa apresentar a causa para ser julgada pelos ímpios, em vez de levá-la aos santos?
Vocês não sabem que os santos hão de julgar o mundo? Se vocês hão de julgar o mundo, acaso não são capazes de julgar as causas de menor importância?
Vocês não sabem que haveremos de julgar os anjos? Quanto mais as coisas desta vida!
Portanto, se vocês têm questões relativas às coisas desta vida, designem para juízes os que são da igreja, mesmo que sejam os menos importantes.
Digo isso para envergonhá-los. Acaso não há entre vocês alguém suficientemente sábio para julgar uma causa entre irmãos?
Mas, ao invés disso, um irmão vai ao tribunal contra outro irmão, e isso diante de descrentes!
O fato de haver litígios entre vocês já significa uma completa derrota. Por que não preferem sofrer a injustiça? Por que não preferem sofrer o prejuízo?
Em vez disso vocês mesmos causam injustiças e prejuízos, e isso contra irmãos!
Vocês não sabem que os perversos não herdarão o Reino de Deus? Não se deixem enganar: nem imorais, nem idólatras, nem adúlteros, nem homossexuais passivos ou ativos,
nem ladrões, nem avarentos, nem alcoólatras, nem caluniadores, nem trapaceiros herdarão o Reino de Deus.
Assim foram alguns de vocês. Mas vocês foram lavados, foram santificados, foram justificados no nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus." (1 Coríntios 6:1-11; NVI)


Entretanto, o apóstolo parece equivocar-se quando sugere ou questiona os leitores sobre preferirem sofrer a injustiça. Mas aí eu digo que, por se tratar de um texto considerado sagrado, é possível adotar uma interpretação no sentido de que essa preferência seja por abrir mão de buscar um juízo externo quando o conflito for entre irmãos.
Agora vamos, para finalizar, vamos ao Sermão do Monte, no qual se inclui o Pai Nosso de Jesus...

Primeiramente, devemos ver Mateus 5, 6 e 7 como algo que não deve ser praticado ao pé da letra, mas, sim para refletirmos. Principalmente dentro do contexto da lei mosaica tal como se interpretava na época. E não existe ali uma visão pronta e acabada sobre a ampla realidade universal.

Primeiro, as bem-aventuranças não excluem a luta por justiças. Senão lembremos deste verso:

"Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque eles serão fartos" (Mateus 5:6)

A partir daí, posso dizer que o texto ensina é sobre esperarmos o momento certo para a realização da justiça, a qual prevalecerá na era do "Reino de Deus". Em outras palavras, caberia ao discípulo ter a consciência de que deveria trabalhar com coragem, esperança e determinação pelos novos tempos. E aí as igrejas cometem muitas vezes o erro de acharem que só no céu haverá solução...

Agora vamos ao ponto onde há um questionamento sobre a regra da retribuição ou como se dá a sua aplicação:


"Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente.
Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;
E, ao que quiser pleitear contigo, e tirar-te a túnica, larga-lhe também a capa;
E, se qualquer te obrigar a caminhar uma milha, vai com ele duas.
Dá a quem te pedir, e não te desvies daquele que quiser que lhe emprestes." (Mateus 5:38-42)

Aqui, nesta passagem, há uma má interpretação pois Jesus não revoga o princípio do talião. Dar a outra face pode significar a não retribuição da vítima e a capacidade de desarmar o agressor pela conduta pacífica, mas não passiva, diante de uma injustiça sofrida. Trata-se de saber lidar com as situações para que se implante no mundo uma ética mais elevada e a justiça, oportunamente, ocorra numa ocasião mais propícia. Ou seja, quando for possível a reflexão do agente causador do mal e a melhor compreensão dos julgadores a respeito do caso.

De qualquer modo, ocorre uma má compreensão desses ditos de Jesus nas sociedades de cultura cristã e daí seus questionamentos são importantes para uma melhor reflexão acerca do assunto. Pois, de fato, a passividade pode acabar dando uma permissão ao crescimento das injustiças sendo que a vítima precisa lidar com a agressão sofrida. Do contrário, se o sentimento da dor não for bem canalizado para restaurar o equilíbrio psíquico da pessoa agredida, esta pode acabar causando mal a terceiros inocentes nessa relação, tipo o empregado que, sendo humilhado pelo patrão, desconta na esposa, na mãe, nos filhos e no cachorro todas as frustrações acumuladas.

Atualmente, vejo que várias igrejas chegam a incentivar que seus membros ingressem com ações judiciais. Não raramente, crentes ajuízam demandas contra crentes da mesma igreja e de outras, o que, ainda sendo lamentável, considero melhor do que a vingança privada ou que a omissão eclesiástica. Pois, quase sempre, ainda falta preparo dos pastores e demais ministros nas congregações para mediarem ou arbitrarem conflitos entre irmãos.

Um abraço.