quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Sem merenda, uniforme rasgado e cantando o hino



Por Pedro Gorki*

Imagine a cena. Uma criança brasileira chega para estudar em uma das escolas afetadas pelo escândalo dos desvios do dinheiro da merenda escolar. Ela tem fome porque, assim como muitas outras, precisa daquela refeição todos os dias. Na escola dela as mesas e carteiras estão quebradas, a quadra esburacada, falta material escolar porque o governo do seu país não quer investir nisso. O professor dela recebe um salário humilhante, a escola sofre com a violência e o descaso. Quando o ministro da Educação manda um recado para essa criança, não é um recado de preocupação com nenhum desses problemas. Ele só quer vê-la sendo filmada todos os dias de pé, debaixo do sol, uniforme rasgado e cantando o hino nacional.

Seria apenas uma piada de mal gosto se não fosse a realidade do Brasil de 2019. A falta de noção, sensibilidade e preparo do novo ministro Ricardo Vélez Rodriguez já eram conhecidos. Mas agora, com a carta enviada oficialmente em seu nome a todas as escolas do país, ele ainda flerta com pelo menos duas ilegalidades: incitar a violação da privacidade de menores de idade com a sua filmagem não autorizada, infringindo o artigo 17 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e aparelhar a estrutura do ministério para finalidades partidárias e particulares. A carta termina com o slogan da campanha política do PSL e de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018, o que fere o artigo 37 da Constituição Federal.

Os estudantes brasileiros não podem ser acusados de ter pouco amor ao seu país. São eles que enfrentam os maiores desafios possíveis todos os dias, nas escolas públicas das periferias, para seguir nos estudos e construir o Brasil que virá. Não é a suposta prática do hino nacional que resolverá os problemas da educação brasileira. Se estivesse realmente preocupado com o ensino no Brasil, o colombiano Vélez Rodriguez não teria, por exemplo, endossado um projeto político que entrega as riquezas do petróleo e do pré-sal para grupos econômicos estrangeiros quando o recurso estava destinado ao financiamento das escolas, da creche ao ensino superior, à aplicação de 10% do PIB no setor. Se gostasse do Brasil e da juventude brasileira, o ministro não sairia por aí dizendo aos mais pobres que, sob a sua gestão, a universidade “não é para todos”. Assim como seu chefe, que bate continência para a bandeira dos Estados Unidos, talvez Vélez Rodriguez esteja mais preocupado com outras nações do que com a nossa.

A ameaça de filmar e intimidar alunos ou professores dentro do ambiente escolar, como dita o ministro na sua carta, faz parte de um grave retrocesso de mordaça, censura e perseguição na educação brasileira, sintonizada com movimentos como o do chamado Escola Sem Partido. Ao invés de promover esse tipo de caça às bruxas, típico de ditaduras, por que o ministro não pede vídeos, por exemplo, dos verdadeiros problemas encontrados pelos jovens nas suas instituições de ensino? Nós, da UBES, estamos convidando os estudantes de todo o país a gravarem vídeos de até um minuto, mostrando a realidade da educação brasileira e a postarem o resultado nas redes sociais com a hastag #minhaescoladeverdade.

Queremos sim construir uma grande nação, mas temos certeza que ela só será possível com uma escola pública do tamanho dos nossos sonhos. Queremos o imediato cumprimento do Plano Nacional de Educação (PNE), aprovado em lei no ano de 2014 e que está sendo vergonhosamente desmontado por esta gestão do MEC. Queremos a renovação do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), queremos a valorização do piso salarial dos professores, a garantia de um ensino crítico, que não censure o livre pensamento e a diversidade na sala de aula, a formação de uma escola democrática, com a participação de estudantes, funcionários, comunidade, o acesso à cultura, ao esporte, à inclusão e promoção da cidadania dos milhões de jovens de todas as regiões, do campo e da cidade.

Por isso, convidamos toda a juventude para a grande Jornada de Lutas do movimento estudantil brasileiro, em defesa da educação, no próximo mês de março. Vamos às ruas pelo que país que merecemos. A imagem do Brasil não é e não poderá nunca ser a de uma criança com o hino memorizado, mas com o futuro esquecido.

(*) Pedro Gorki e presidente da União Brasileira de Estudantes Secundaristas - UBES.

OBS: Artigo extraído de http://midianinja.org/news/sem-merenda-uniforme-rasgado-e-cantando-o-hino/

sábado, 16 de fevereiro de 2019

O luto parece não ter fim



Por Leonardo Boff*

O Brasil parece tomado por um luto que nunca termina. As pessoas andam acabrunhadas por causa do desemprego e pelas reformas conservadoras que o novo governo pretende introduzir, tirando direitos dos trabalhadores e atacando diretamente várias políticas sociais que beneficiavam os mais destituídos. Estudantes universitários que viviam com bolsas do governo tiveram que interromper seus estudos. Reformas na educação nos remetem à fase anterior ao Iluminismo, em alguns pontos, à Idade Média. Uma sombra escura pesa sobre o rosto de milhões de compatriotas.

Parece que cada dia acontece algo sinistro. Sem dúvida o grande luto nacional foi o criminoso desastre de Bromadinho-MG que, com o rompimento da barragem da mineradora Vale, foram dizimadas centenas de vidas em meio a um tsunami de resíduos de metais pesados, lama e água, poluindo o rio por dezenas de quilômetros. Luto foi a morte do conhecido jornalista Ricardo Boechat com a queda de um helicóptero. Luto foi a morte da grande artista, cantora e diretora Bibi Ferreira. E outros que caberiam ser citados.

Abordamos o tema do luto há pouco tempo atrás. Mas a situação é assim grave que nos convida dar-lhe um cuidado especial. Ao invés de utilizar a abundante literatura atual existente sobre o tema, permito-me relatar uma experiência pessoal que aclara melhor a necessidade de cuidar do luto.

Em 1981 perdi uma irmã com a qual tinha especial afinidade. Era a última das irmãs de 11 irmãos. Como professora, por volta das 10 horas, diante dos alunos, deu um imenso brado e caiu morta. Misteriosamente, aos 33 anos, rompera-se-lhe a aorta por uma doença rara.

Todos da família vindos de várias partes do pais, ficamos desorientados pelo choque fatal. Choramos copiosas lágrimas. Passamos dois dias vendo fotos e recordando, pesarosos, fatos engraçados da vida da irmãzinha querida.

Eles puderam cuidar do luto e da perda. Eu tive que partir logo após para o Chile, onde tinha palestras para franciscanos de todo o Cone Sul. Fui com o coração partido. Cada palestra era um exercício de autosuperação. Do Chile emendei para a Itália onde devia falar para religiosas de toda uma congregação.

A perda da irmã querida me atormentava como algo absurdo e insuportável. Comecei a desmaiar duas a três vezes ao dia sem uma razão física manifesta. Tive que ser levado ao médico. Contei-lhe o drama que estava passando. Ele logo intuiu e disse:

Você não enterrou ainda sua irmã nem guardou o luto necessário; enquanto não a sepultar e cuidar de seu luto, você não melhorará; algo de você morreu com ela e precisa ser ressuscitado”.

Cancelei todos os demais programas. No silêncio e na oração cuidei do luto. Restaurado, num restaurante, enquanto lembrávamos da irmã querida, meu irmão também teólogo, Clodovis, e eu escrevemos num guardanapo de papel esta pequena reflexão.

“Foram trinta e três anos, como os anos da idade de Jesus.Anos de muito trabalho e sofrimento,Mas também de muito fruto.Ela carregava a dor dos outrosEm seu próprio coração, como resgate.Era límpida como a fonte da montanha,Amável e terna como a flor do campo.Teceu, ponto por ponto e no silêncio,Um brocado precioso.Deixou dois pequenos, robustos e belos.E um marido, cheio de orgulho dela.Feliz você, Cláudia, pois o Senhor voltando.Te encontrou de pé, no trabalhoLâmpada acesa.Foi então que caíste em seu regaço,Para o abraço infinito da paz”.

Entre seus papéis encontramos a frase: ”Há sempre um sentido de Deus em todos os eventos humanos: importa descobri-lo”. Integramos o luto mas ficou uma ferida que nunca se fecha. Até hoje estamos procurando o sentido daquela frase misteriosa. Um dia se revelará.


(*) Leonardo Boff é teólogo e filósofo. Escreveu a obra O cuidado necessário, Vozes 2012.

OBS: Artigo e imagem da flor publicados no blogue do autor dia 14/02/2019, conforme consta em https://leonardoboff.wordpress.com/2019/02/14/o-luto-parece-nao-ter-fim/

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Conhecendo Chico Mendes?



Por Alfredo Sirkis

Para quem não teve a honra de conhecê-lo, meu testemunho:

Conheci o Chico Mendes em Xapuri, em 1987.  Foi uma amizade intensa, instantânea,  e um pacto imediato de apoio nosso à luta dos seringueiros que, na nossa ótica,  representava a junção das lutas sociais e ambientais. Voltando ao Rio passei a montar uma rede de apoio ao Chico Mendes que logo veio ao Rio e participou de um encontro dos verdes em Petrópolis.

 Tinha uma constante preocupação com o Chico que estava ameaçado de morte por vários pecuaristas que tinha impedido de ampliar sua "fronteira de pasto" realizando "empates". Um deles, Darli Alves, era o mais perigoso. O mais preocupante é que parecia haver uma ligação da Policia Federal, supostamente lá para proteger Chico, com os fazendeiros que o ameaçavam, inclusive Darli. O Conselho Nacional de Serigneiros descobriu que ele cometera crimes de morte no Paraná e tinha inclusive um mandado de prisão por lá. A informação foi vazada para ele que foi se esconder na floresta.  Jurou de morte o Chico que considerava responsável por essa revelação de seus antecedentes criminais.

 No Rio, logo depois das eleições de novembro de 88, organizamos um grande ato chamado Salve a Amazônia.  Consistia de uma maratona andando, correndo e pedalando do Jardim Botânico ao Monumento a Estácio de Sá, no Aterro do Flamengo e a colocação de um imenso pano de juta com os dizeres Salve a Amazônia. Vejo e revejo as cenas: Betinho, Lucélia Santos, John Neschling, Gabeira, Minc, Nei Matogrosso, Luise Cardoso. Há uma cena do Chico conversando comigo no meu velho Opala verde oliva quando nos dirigíamos ao bondinho do Pão de Açucar.  Falavamos sobre seus problemas de segurança e ele admitindo o perigo do tal Darli Alves, e eu tentando convencê-lo a ficar no Rio até que conseguissimos fundos para contratar um grupo de seguranças particulares pois, pelas histórias que ele contava, os policiais que o protegiam eram pouco confiáveis.

 A certa altura achei que o tinha convencido. Nossas amigas Rosa e Dora também faziam pressão nesse sentido. O Chico decidiu ficar no Rio. Depois por pressão da esposa que ficara sozinha --queríamos trazer a familia dele também-- ele decidiu passar o Natal em Xapuri...


Um mês depois foi assassinado. Tornou-se um mártir internacional da causa ecológica, um símbolo, uma bandeira de luta mas a perda foi irreparável. Era um ser humano extraordinário:generoso, sensível, divertido e um dos poucos quadros capazes de unificar em torno de uma causa comum setores díspares. Não se encontrou mais um líder com as mesmas características. A causa da Amazônia tornou-se internacional com a repercussão de sua morte mas penso que teria feito muito mais, vivo. Com os que ficamos permanece a obrigação de não deixar que sua morte tenha sido em vão. Isso hoje se expressa na luta para que o Brasil cumpra  metas de redução de queimadas e desmatamentos. 

 Isso foi obtido quando o desmatamento caiu de 27 mil km2 em 2004 para pouco mais de 4 mil, em 2012. Atualmente volta a aumentar (8 mil) ano passado e um aumento de 48% só nos três meses da campanha eleitoral. A uma tendência ao aumento do desmatamento e das emissões em 2019. Isso irá provocar reações variadas national e internacionalmente. 

Um cisa é certa: Chico Mendes será mais assunto.

OBS: Artigo extraído do blogue do autor, conforme consta em https://alfredosirkis.blogspot.com/2019/02/conhecendo-chico-mendes.html?fbclid=IwAR1-YoM3qltgZC1iPe5ep8wsp2qbiZ4Sfps6MKChnHQJu00ve-nm3kIsck4&m=1

domingo, 10 de fevereiro de 2019

DESCASO MATA. MAS NÃO MORRE NUNCA.



Por Marli Gonçalves*

O celeiro de jovens atletas, em contêineres, bem ao lado de cilindros de oxigênio, inflamáveis, explosivos, e onde nos papéis oficiais deveria ser só um estacionamento. O restaurante e os prédios administrativos bem abaixo no caminho da barragem que se rompeu, sem as sirenes que apenas agora soam descontrolados aos ouvidos de outras cidades, de outras barragens. As árvores, as pedras, que caem e que rolam, nem elas se aguentam de ver aos seus pés sempre tanta sujeira, tantas construções irregulares. Pessoas arrancadas de suas vidas em átimos, segundos, o tempo que piscamos.

Nós piscamos. Eles, os que se foram, fecham os olhos. Para sempre. Outros, os que fecharam os olhos durante muito tempo para esses erros bárbaros, para essas tragédias mais do que anunciadas, previstas, cantadas, soletradas, continuam. Sacando de seus bolsos, sabe-se lá se deixando cair algum dinheiro ganho enquanto dormitavam, lenços, onde choram compungidos. Consolam as vítimas, os sobreviventes, seus familiares, tentam explicar o inexplicável, abrem suas rigorosas investigações lentas, decretam luto oficial, bandeiras a meio mastro.

Foi assim em Mariana, foi assim em Santa Maria. Será assim, talvez, em Brumadinho, nas cidades vizinhas alarmadas agora a todo instante. Poderá ser assim em mais pontes e viadutos que se dissolvem, assim como o asfalto vagabundo com o qual seguidamente recapeiam ruas e estradas, crateras abertas, feridas em chagas que não se curam, bueiros e bocas abertas esperando as suas próximas vítimas.

O descaso com que tratam as cidades, os espaços onde vivemos, os espaços públicos e privados, as ruas por onde passamos, as estradas por onde andamos, é aterrador. São os fios pendurados que eletrocutam, deixados ali por uma empresa, pela outra que mexeu, por mais uma que precisou desligar ou ligar. São as responsabilidades jogadas de ombro a ombro, de mão em mão, de governo a governo, de uma esfera a outra.

Promessas ouvimos. Mas quem tem de fazê-las, definitivamente, somos nós. Aos deuses, para que nos protejam dos perigos que o descaso de anos nos têm sido seguidamente mostrados, e anos após anos. Câmaras municipais dormentes dão nomes dos mortos às ruas e avenidas que os mataram – afinal precisam ser homenageados, como dizem, para não serem jamais esquecidos. Aqui e ali fazem leis que nem eles cumprem; outras, apenas ridículas. Em qual vereador você votou nas últimas eleições municipais, lembra?

Assembleias legislativas? Ora, faça-me o favor. Olha a do Rio de Janeiro, quase toda atrás das grades, por desvios, corrupção, fantasmas bem vivos, laranjas espremidos, “rachadinhas” de salários. A de São Paulo aguarda investigações; claro, se acharem alguém lá dentro daqueles corredores vazios e inúteis para perguntar qualquer coisa. Eles, os deputados, certamente dirão que estão nas suas “bases”, lutando por suas regiões, pelas cidades que representam no Estado. Em qual deputado estadual votou na última eleição há poucos meses, lembra?

Aí ficamos nós, daqui de nossas vidas, chorando, varrendo a água para fora de nossas casas, recolhendo escombros e até culpando Deus por tantas desgraças, assistindo ao show diário de insanidade e briga pelo poder no Congresso Nacional, Câmara e Senado Federal. Lá longe. Lá no bonito Planalto Central.

Volte para cá. Volte seus pensamentos de novo ao seu ao redor. É nele que precisamos ficar atentos, fiscalizar, denunciar, fotografar, registrar todos os pedidos que fazemos quando ( e se é que ) conseguimos ser atendidos por algum canal oficial, e que são solenemente ignorados, até que um dia…a casa cai, a árvore se mata e mata, o buraco engole, o prédio pega fogo, a ponte cai, o rio transborda, o fio eletrocuta, a pedra rola do morro, a barragem rompe…

Ah, não esqueça de pagar o IPTU. Ele está vencendo esses dias. E o dinheiro que ele arrecada – pode ler no “carnê” – deveria servir para que não amargássemos tantas tragédias nas nossas portas. Há também muitos outros, além dos embutidos como linguiças em tudo o que compramos. Cadê o dinheiro que tava aqui? O gato comeu, o urubu pôs fogo, a lama levou.

(*) Marli Gonçalves é jornalista

OBS: Créditos autorais da primeira foto atribuídos a Tomaz Silva/Agência Brasil enquanto a última extraídos do blogue Mercado Imóveis. Já o texto da autora e a segunda imagem encontram-se na postagem publicada no site Chumbo Gordo, conforme consta em http://www.chumbogordo.com.br/23529-descaso-mata-mas-nao-morre-nunca-por-marli-goncalves/

sexta-feira, 8 de fevereiro de 2019

Escola Sem Partido: retrocesso e decadência na educação brasileira




Por Afrânio Boppré*


No início de dezembro de 2018, ainda sem ser empossado, o senador eleito Flávio Bolsonaro deu entrevista à Globonews, na qual além de vários despautérios declarou que dará atenção máxima ao tema Escola Sem Partido (ESP), no exercício de seu mandato. Dias depois, na tentativa de aprovar na Câmara Federal, em Brasília, uma das versões da mesma lei, o deputado pastor Eurico (Patri) classificou “que o Escola sem Partido evitará que os alunos se tornem soldados do mundo esquerdopata”.

Jair Bolsonaro, por sua vez, não deixou por menos, gravou uma mensagem em vídeo que foi amplamente difundida nas redes sociais estimulando estudantes a gravarem com seus aparelhos celulares os “professores doutrinadores”. Na prática, o clã Bolsonaro e sua equipe governamental aderiram a um movimento de fanáticos de extrema-direita, inicialmente idealizado pelo procurador do Estado de São Paulo, Miguel Nagib, e passaram a empunhar esta bandeira com o nítido objetivo de fazer uma impiedosa perseguição à liberdade de pensamento e à profissão de professor.

O nome do movimento já é por si só uma aberração. Aproveitando-se do fato de que os partidos em geral gozam de pouco prestígio na sociedade, inventaram que existe partido político nas escolas e embrenharam-se na “nobre” tarefa de salvar as crianças desta gigantesca ameaça. É por esta razão que eu digo insistentemente que o antônimo de Escola sem Partido não é Escola com Partido; é escola livre, plural, democrática, inclusiva, cidadã e laica. A escola é um espaço com primazia para abrir a reflexão sobre a vida, seus impasses, desafios, dificuldades e caminhos. Escola é muito mais do que superar a barreira da ignorância ou se reduzir ao aprendizado mecânico “Eva viu a uva”.

Insisto em falar a cerca do nome desse movimento de extrema-direita porque ele foi metodicamente pensado, planejado, marqueteiramente calculado e é indispensável a sua desconstrução, seu rebatimento. Muita confusão ele tem gerado no meio inclusive do professorado. Senão vejamos, imagine você se alguém lançasse um movimento com o seguinte tema: Empresa sem Tortura. Por óbvio que ele de imediato atrairia a simpatia de muita gente, afinal quem aceita a tortura é um “grupo” muito reduzido em nossa sociedade. A imensa maioria acabaria concordando com a tese lançada na campanha, no movimento. Eticamente, é necessário nos perguntarmos se de fato existe tortura dentro de empresas? O que se entende por tortura? Quantas empresas praticam a tortura no Brasil? De quem são esses dados estatísticos? Como foram colhidos? A quem interessa? Vamos estimular que os trabalhadores gravem com seus celulares práticas torturantes como forma de denúncia? Etc.

Destarte, nossas escolas foram estúpida e criminosamente lançadas numa onda impiedosa de ataque. Até mesmo setores da mídia, deixando os ensinamentos do bom jornalismo de lado, assumiram existir partido dentro da escola e abriram um descomunal espaço para esta pauta.

A grosso modo há um conflito base, este não nasce de ideias soltas, vindas de outro mundo, é um conflito que está posto em várias dimensões da sociedade. O conflito a que me refiro é objetivo e possui uma materialidade social real. Ele aparece na falta de esgoto na periferia das cidades, na condição de ser mulher, ele está presente nas condições de transporte da classe trabalhadora, na relação entre salário do trabalhador e no lucro do patrão etc. A Escola sem Partido é também expressão desse mundo e por isso, não é neutra. Ela é o conflito posto noutra dimensão por um determinado segmento da sociedade que pretende como estágio supremo a eliminação, a negação do outro, a inexistência do contraditório. Como objetivo maior, o movimento Escola sem Partido não nasceu com o propósito de “defender” a escola, ele advoga a tese da escola de pensamento único. Por trás dessa tese, me parece que temos elementos de uma visão pedagógica: Pedagogia Tecnicista. Segundo Dermeval Saviani em Escola e Democracia essa corrente pedagógica parte:


[…] do pressuposto da neutralidade cientifica e inspirada nos princípios da racionalidade, eficiência e produtividade, essa pedagogia advoga a reordenação do processo educativo de maneira a torná-lo objetivo e operacional. (SAVIANI, 1984)

Parece-me ainda que nesse movimento há interesse em suprimir subjetividades, troca de opiniões, troca de experiências e ensinamentos na relação professor/ estudantes. Não bastasse tudo isso, ainda às vezes eu me pergunto se a ESP não seria uma espécie de “abre alas” para determinados setores do capital que investem na educação e estão preparando terreno para a potencialização do ensino a distância – educação/mercadoria – ensino robotizado.


STF DEFINE INCONSTITUCIONAL O PROJETO ESP

O tema foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF) em ação da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee) e Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), sendo que o ministro relator Luís Roberto Barroso decidiu pela inconstitucionalidade na íntegra do projeto de lei promulgado pela Assembleia Legislativa de Alagoas por entender que em matéria de diretrizes e bases da educação nacional a competência é privativa da União e em outros temas poderá haver competência concorrente entre a União e o Estados, no despacho o ministro também exarou a seguinte opinião sobre a ESP:


É tão vaga e genérica que pode se prestar à finalidade inversa: a imposição ideológica e a perseguição dos que dela divergem. Portanto, a lei impugnada limita direitos e valores protegidos constitucionalmente sem necessariamente promover outros direitos de igual hierarquia.

A despeito da decisão monocrática do STF, e, portanto, não definitiva, o tema cresce na opinião pública. Estamos vivendo uma conjuntura política no Brasil que opiniões conservadoras crescem vertiginosamente no seio da sociedade, e muitas vezes, por falta de um espaço adequado para debate e esclarecimento.

Ainda sobre a suposição que levanto, talvez com certa benevolência de minha parte, reconheço, relativa a existir proposta pedagógica por de trás da ESP, o ministro do STF alude:


A imposição da neutralidade – se fosse verdadeiramente possível – impediria a afirmação de diferentes ideias e concepções políticas ou ideológicas sobre um mesmo fenômeno em sala de aula. A exigência da neutralidade política e ideológica implica, ademais, a não tolerância de diferentes visões de mundo, ideologias e perspectivas políticas em sala.

Curioso notar, que ao mesmo tempo em que a posição do ministro Barroso é avançada, o STF resolveu adiar a decisão sobre o assunto. No momento em que escrevo esta contribuição ao debate, o STF surpreendentemente se esquivou em exarar sua posição, suprimiu da pauta o tema. Estaria o STF dando tempo para a referida matéria fluir na Câmara Federal? Até que ponto estaria o STF se acovardando para declarar nos termos do relator: “não tenho dúvidas sobre a plausibilidade da inconstitucionalidade integral da Lei 7.800/2016” (Lei de Alagoas).

Nesta toada, a conservadora-master das revistas semanais brasileiras, a revista Veja, abriu opinião de capa contra a ESP afirmando ser a abertura de um clima de caça às bruxas e que tem tudo para piorar o ensino brasileiro. A revista defende inclusive a pluralidade de ideias e a qualificação do professor:


A todo bom professor cabe estimular o confronto de ideias e o livre pensar, inclusive expressando seu ponto de vista, mas não catequizar – uma linha fina que exige discernimento constante. Quanto mais qualificado for um professor, menor a chance de postura equivocada. Não é o caso de impor leis nem de pregar cartazes na parede do colégio com os “deveres do professor” – basicamente, não falar nada de que os pais discordem – , como prevê um anexo ao projeto. (REVISTA VEJA Edição 2608 – 14 de novembro de 2018 p.76).EDUCAÇÃO DE QUALIDADE EXIGE PROFESSORES(AS) QUALIFICADOS(AS)

Por óbvio, ser contra a ESP não significa aceitar que o(a) professor(a) faça o que quiser e o que bem entender. A profissão traz consigo uma postura ética, seu poder em sala de aula é amplo, mas não é pleno. E o próprio profissional da educação sabe disso. O fato de haver desvios em alguns casos, não pode nos levar a condenar a todos. É sabido, porém, que o ato de educar é diferente do ato de ensinar. Ensinar é uma transferência de conteúdos prontos. A educação é um processo de preparação para inserir a criança, o jovem e o próprio adulto na sociedade.

A educação contém o ensino, mas o inverso não é verdadeiro. A legislação brasileira fala em planos nacional, estaduais e municipais de educação e estes não se resumem ao ensino. As universidades trabalham com o tripé (ensino, pesquisa e extensão) de modo a se relacionarem com a sociedade. Ou seja, é farto o entendimento entre os especialistas que o Brasil precisa de educação de qualidade e de educadores qualificados. Para alguns, esse entendimento pode representar uma ameaça. Preferem a constituição de um processo de adestramento, meramente robótico, ou ainda, a transferência de um saber secular e contido em manuais de páginas amareladas. A educação libertadora exige por pressuposto a liberdade do professor em agir com o compromisso de levar o educando a fazer livremente suas escolhas. Ora, este entendimento produz a possibilidade de se abrir portas para a negação do mundo existente, do mundo tal como ele é, e isso traz desconfortos para os setores conservadores e é interpretado como “esquerdopatia” e “doutrinação”. Para esses setores, o conceito de liberdade é restrito, alcança tão somente os limites da promoção de seus valores. Volto a dizer: a Escola Sem Partido é uma expressão do conflito social real existente nas relações sociais.

Não que eu esteja encantado, mas o despachado do ministro Barroso no tocante à Medida Cautelar requerida pela Contee e pela CNTE ataca diretamente a ESP. Senão vejamos:


Vale notar, que a norma impugnada expressa uma desconfiança com relação ao professor. Os professores têm um papel fundamental para o avanço da educação e são essenciais para a promoção dos valores tutelados pela Constituição. Não se pode esperar que uma educação adequada floresça em um ambiente acadêmico hostil, em que o docente se sente ameaçado e em risco por toda e qualquer opinião emitida em sala de aula.


NINGUÉM LARGA A MÃO DE NINGUÉM

Ora, a resposta a esta estúpida campanha tem que ser altiva. Deve ser tão qualificada quanto o esforço de educar que nossos professores fazem de norte a sul do nosso país. Mas uma coisa é certa, os professores e professoras não podem temer as ameaças e os constrangimentos. Os estudantes, mesmo quando estimulados e ativos em favor da ESP, não são nossos inimigos. Ao contrário, estariam eles dando sinais claros que precisam de ajuda educacional. Nunca as escolas foram tão importantes para defender a democracia e a liberdade. Os sindicatos de professores(as), as associações de pais e mestres, os(as) secretários(as) municipais de educação, os departamentos de pedagogia de nossas universidades, a imprensa livre, a concentração unitária de um leque plural de forças deve se associar em favor da defesa do princípio da liberdade e da democracia. O Brasil não cairá nesta armadilha.


(*) Afrânio Boppré é professor, mestre em geografia e vereador pelo PSOL em Florianópolis

OBS: Texto extraído do portal da Fundação Lauro Campos, conforme consta em http://www.laurocampos.org.br/2019/01/29/escola-sem-partido-uma-contribuicao-o-debate/ 

Viva São Cosme e São Damião!

Aí um texto publicado no Facebook pelo historiador e deputado Chico Alencar que confere um bom sentido às crenças religiosas e aos costume...