terça-feira, 26 de março de 2019

Precisamos de uma educação do coração



Por Tenzin Gyatso, o 14º Dalai Lama*

Quando o presidente dos Estados Unidos diz "Primeiro a América", ele está fazendo com que seus eleitores se sintam felizes. Sou capaz de entender isso. Mas, de uma perspectiva global, esta afirmação não é relevante. Hoje em dia, tudo está interconectado.

A nova realidade é que somos todos interdependentes uns com os outros. Os Estados Unidos são uma nação que lidera o mundo livre. Por essa razão, peço ao seu presidente que pense melhor sobre questões de âmbito global. Não há fronteiras nacionais quando se trata de proteção climática ou de economia global. Tampouco há fronteiras religiosas. Chegou a hora de entendermos que somos todos seres humanos iguais neste planeta. Quer desejemos ou não, precisamos coexistir.

A história nos diz que quando as pessoas perseguem apenas seus próprios interesses nacionais, há conflitos e guerras. Essa visão é míope e estreita. É também não realista e desatualizada. Vivermos juntos como irmãos e irmãs é o único caminho para a paz, para compaixão, para a presença mental e para termos mais justiça.

Chegou a hora de entendermos que somos todos seres humanos iguais neste planeta. Quer desejemos ou não, precisamos coexistir.

A religião pode, até certo ponto, ajudar a superar a divisão. Mas só a religião não será suficiente. Neste momento, a ética secular global é mais importante do que as religiões clássicas. Precisamos de uma ética global que possa acolher os que creem em alguma religião e os que não creem em religião alguma, incluindo os ateus.

Meu desejo é que, um dia, a educação formal dê atenção à educação do coração, que ensine o amor, a compaixão, a justiça, o perdão, a presença mental, a tolerância e a paz. Essa educação é necessária, desde o jardim de infância até o ensino médio e as universidades. Refiro-me a aprendizagem social, emocional e ética. Precisamos de uma iniciativa mundial para educar o coração e a mente nesta era moderna.

Atualmente, nossos sistemas educacionais são orientados principalmente para valores materiais e para o treinamento do intelecto. Mas a realidade nos ensina que não chegamos à razão exclusivamente através do intelecto. Precisamos colocar mais ênfase nos valores internos.

A intolerância leva ao ódio e à divisão. Nossos filhos devem crescer com a ideia de que o diálogo, e não a violência, é a maneira melhor e mais prática de resolver conflitos. As gerações mais jovens têm uma grande responsabilidade em garantir que o mundo se torne um lugar mais pacífico para todos. Mas isso só poderá se tornar realidade se educarmos, não apenas o cérebro, mas também o coração. Os sistemas educacionais do futuro devem dar maior ênfase ao fortalecimento das habilidades humanas, como o afeto, o senso de unicidade, a humanidade e o amor.

Vejo ainda mais claramente que o nosso bem-estar espiritual não depende da religião, mas da nossa natureza humana inata – nossa afinidade natural pela bondade, pela compaixão e por cuidar dos outros. Independentemente de se pertencer a uma religião ou não, todos nós temos uma fonte fundamental e profundamente humana de ética dentro de nós mesmos. Precisamos nutrir essa base ética da qual nós todos compartilhamos.

A ética, ao contrário da religião, é fundamentada na natureza humana. Por meio da ética, podemos trabalhar na preservação da criação. A empatia é a base da coexistência humana. Creio que o desenvolvimento humano depende da cooperação e não da competição. A ciência nos confirma isso.

Precisamos aprender que a humanidade é uma grande família. Somos todos irmãos e irmãs: fisicamente, mentalmente e emocionalmente. Mas ainda nos concentramos demasiadamente em nossas diferenças em vez de nossas semelhanças. Mas ao final, cada um de nós nasceu da mesma maneira e morrerá da mesma maneira.

(*) O 14º Dalai Lama, Tenzin Gyatso, é o líder espiritual do Tibete e Prêmio Nobel da Paz. 

OBS: Artigo escrito em co-autoria com Franz Alt, jornalista de TV e autor de best-seller, sendo que o texto aqui postado é uma adaptação extraída do livro “Um apelo ao mundo: o caminho para a paz em tempos de divisão”, tratando-se de uma tradução livre de Jeanne Pilli. O original em inglês publicado por Los Angeles Times de onde foi extraída a imagem acima em que os créditos da imagem são atribuídos a Geert Vanden Wijngaert / Associated Press, conforme consta em http://www.latimes.com/opinion/op-ed/la-oe-dalai-lama-alt-we-need-an-education-of-the-heart-20171113-story.html 

sexta-feira, 22 de março de 2019

Previdência, economia e Constituição




Por Luiz Fux

A Previdência Social é um sistema de seguro obrigatório em que o trabalhador participa por meio de contribuições mensais e recebe, em contrapartida, o benefício de uma renda no momento em que estiver inapto, seja pelo advento de aposentadoria seja pelo de riscos econômicos como a perda de rendimentos em razão de doença, invalidez, maternidade ou até mesmo a morte de cônjuge.

No contexto brasileiro, muito se discute a respeito da necessidade ou não de uma reforma. Nesse diapasão é que, em 20 de fevereiro deste ano, o presidente Jair Bolsonaro e sua equipe econômica, chefiada pelo ministro Paulo Guedes, entregaram uma proposta.

O equilíbrio das contas públicas depende da atuação conjunta dos três Poderes. O Executivo deve organizar a política previdenciária, imprimir maior eficiência à gestão e, eventualmente, propor alterações legislativas para reorganizar as finanças em face de projeções etárias, déficits orçamentários e etc.

Por sua vez, ao Poder Legislativo incumbe a tarefa de discutir com maturidade as propostas. Quanto ao Poder Judiciário, cabe a função de garantir os direitos constitucionalmente assegurados, sem olvidar do esforço das instituições político-representativas em imprimir equilíbrio econômico-financeiro.

As demandas judiciais implicam ao Judiciário a necessidade de realizar um cauteloso raciocínio. Por um lado, o juiz não pode se afastar das previsões legais e dos mandamentos constitucionais protetivos no referente aos direitos adquiridos no tocante à aposentadoria ou às garantias de proteção ao trabalhador em situação de desemprego involuntário.

Por outro, como bem nos relembram Guido Calabresi (ex-desembargador federal nos EUA e professor de Yale) e Philip Bobbitt (professor da Universidade de Columbia), o Judiciário não pode esquecer que está inserido em um ambiente político-econômico de recursos limitados no qual, não raras vezes, o poder público necessita realizar verdadeiras “escolhas trágicas” na medida em que elege como alocar recursos.

Como já bem demonstrado por Cass Sunstein e Stephen Holmes, a proteção a qualquer direito, seja de cunho individual seja de social, representa custos ao Estado, prescindindo, consequentemente, de uma alocação dos recursos. Nesse diapasão, a discussão a respeito de direitos, especialmente os de cunho social, não está só adstrita a um debate principiológico. Para além do reconhecimento de direitos fundamentais, conquista histórica expressada na Carta de 1988, hoje, vivemos em um paradigma em que, cada vez mais, juristas precisam refletir, também, a respeito de como efetivá-los. As promessas constitucionais expressas não podem deixar de vir acompanhadas de consequências jurídicas e fáticas concretas, cogentes e eficazes, sob pena de restarem vãs e frias enquanto letras mortas no papel.

A imposição de previsão orçamentária prévia não deve, per si, refletir um obstáculo ao reconhecimento de um direito. O Poder Judiciário tampouco pode legitimar o descumprimento de deveres constitucionais por parte do poder público, sob a justificativa de falta de recursos.

O que se deve ter em mente é o fato de que decisões judiciais podem produzir consequências sistêmicas. Em vez de efetuar mero enfrentamento direto, com decisões judiciais simplórias, é preciso repensar modelos de interferência judicial em que se distribuem os custos de decisão, criando incentivos para soluções negociais, legislativas ou até mesmo para que atores com maior expertise técnica possam colaborar na solução.

A atividade jurisdicional deve ultrapassar a visão “credor (cidadão) X devedor (Estado)” que vem orientando as intervenções judiciais. É dizer: eventual intervenção judicial precisa partir de uma óptica funcional, mensurando-se o grau de utilidade, os impactos sociais que ela promoverá e os incentivos e os desincentivos gerados por ela aos demais atores políticos envolvidos, a fim de se chegar a uma resolução dialógica para o problema, em prol dos cidadãos impactados.

O intuito, portanto, é o de promover decisões judiciais responsivas aos problemas presentes na realidade social sem, no entanto, “drenar recursos escassos e criar privilégios não universalizáveis”.

(*) Luiz Fux é jurista e ministro do Supremo Tribunal Federal

OBS: Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo, conforme extraído juntamente com a foto do portal da CSB em http://csb.org.br/opiniao/previdencia-economia-constituicao

quinta-feira, 21 de março de 2019

Um futuro com "panem et liber"



Outro dia, no Facebook, um internauta apresentou-me uma questão através da área de comentários numa das postagens recentes do meu perfil pessoal. Em sua fala, ele colocou o seguinte que passo a citar com correções:

"(...) entenda que esse planeta assim como outros que foram habitados também vão sumir, acabar. Acho que o senhor já se deu conta do quanto a tecnologia está acabando com os empregos. De um lado, ela leva prazer a quem a utiliza e, por outro, ela vem para dissipar milhões de emprego. E quem não se atualizar vai ficar no sub-emprego. Eu lhes pergunto, Dr. Pessoas estão a cada dia mais perdendo seus empregos. Empresários fechando as portas, os pequenos e médios então nem se falam. O que fazer, doutor, ainda mais em cidades em que a tecnologia demora mais a chegar, mas chega e, quando chega, as pessoas não estão preparadas para ela. Aí vem quem se preparou e leva o pouco que tem?"

Confesso que, há mais de duas décadas, penso a respeito disso e defendo algo que pode parecer escandaloso para uns e desnecessário para outros. Porém, sou amplamente favorável a que todos os desempregados do mundo sejam sustentados através de um programa de renda mínima que lhes permita viver dignamente. Trata-se de promover uma nova política do "pão e circo" parecido como fizeram os romanos na Antiguidade, mas com algumas modificações para os dias atuais e dentro de um novo propósito.

Como se sabe, os imperadores de Roma conseguiram conter várias revoltas sociais distribuindo comida e promovendo eventos para distrair o povo. Segundo um texto extraído do portal InfoEscola,

"(...) nos tempos de crise, em especial no tempo do Império, as autoridades acalmavam o povo com a a construção de enormes arenas, nas quais realizavam-se sangrentos espetáculos envolvendo gladiadores, animais ferozes, corridas de bigas, quadrigas, acrobacias, bandas, espetáculos com palhaços, artistas de teatro e corridas de cavalo. Outro costume dos imperadores era a distribuição de cereais mensalmente no Pórtico de Minucius. Basicamente, estes "presentes" ao povo romano garantia que a plebe não morresse de fome e tampouco de aborrecimento. A vantagem de tal prática era que, ao mesmo tempo em que a população ficava contente e apaziguada, a popularidade do imperador entre os mais humildes ficava consolidada (...)" - Extraído de https://www.infoescola.com/historia/politica-do-pao-e-circo/ 

Todavia, sabemos que havia críticos dessa política. O próprio texto original desta citação faz menção do poeta Décimo Júnio Juvenal, o qual viveu em Roma entre os séculos I e II da era comum, sendo ele o autor das famosas Sátiras. Para o escritor, os romanos, que antes eram tão poderosos, tornaram-se escravos de prazeres corruptores e só precisam de "pão e circo" (panem et circenses 10.81; i.e. comida e diversão).

Fato é que a política assistencial do Império Romano não pode ser vista apenas sob esses prismas sendo que, desde o século XIX, novas visões a respeito daquela época vêm sendo construídas. Pois a ajuda do governo, além de ser insuficiente para o sustento de uma família, no sentido de cobrir gastos com aluguéis, roupas e outros bens de consumo, não eliminava o descontentamento dos pobres, mas apenas diminuíam, de modo que a plebe continuava a reivindicar melhorias na área social.

Em minha visão, sou a favor da assistência estatal para quem não tem renda para o próprio sustento, porém penso ser um desperdício não incentivar o uso do tempo livre do ser humano para fins produtivos através do estudo. E aí a mudança que eu faria na adoção dessa política seria substituir o Coliseu, o Circo Máximo, os teatros, as terminas romanas, e outros espaços de sociabilidade de uso dos antigos pelas escolas do saber. Ou seja, o desempregado, no mundo da tecnologia, iria aplicar parte das horas de seu dia estudando aquilo que lhe desse prazer.

Essa ideia de um futuro com pão e livro viria de encontro ao que propôs o sociólogo italiano Domenico de Masi, autor da conhecida obra O ócio criativo (2000). Em sua monografia, ele defendeu que, com o avanço da tecnologia, o homem poderia dispor de mais tempo para atividades como o lazer, a convivência familiar, os cuidados com a saúde e investir na própria formação profissional. Logo, ao invés de laborar as oito horas diárias, o trabalhador futuro realizaria a mesma produção em três ou quatro horas.

De qualquer modo, assim como é importante a redução das horas de trabalho para o profissional estudar e cuidar mais de si, deve a assistência permitir que qualquer interessado tenha acesso à educação de maneira ilimitada, contínua e formarmos um ambiente social propício ao estudo. Pois acredito que, sem o medo de passar fome, tendo as suas necessidades básicas satisfeitas, as pessoas terão mais vontade de aprender vindo a se tornar úteis para o mundo de tecnologias no qual já estamos vivendo e que requer mão-de-obra qualificada para atuar no mercado profissional.

Quem sabe um dia os nossos políticos não se abrem para esse entendimento?!

Ótima noite a todos!

OBS: Texto originalmente postado em meu blogue pessoal sendo que a imagem acima eu a extraí de https://pt.dreamstime.com/imagem-de-stock-p%C3%A3o-e-livros-velhos-image21252981

sábado, 16 de março de 2019

O conservador e o reacionário



Por Gabriel Zani*

Quando eu entrei na Faculdade de História, achava que o curso seria relativamente fácil. Acreditava que seria algo como "decorar datas" e memorizar "nomes importantes" do passado. Contudo, não foi bem assim.

Primeira aula de Metodologia da História e veio o choque.

Conceitos e mais conceitos. Via a boca do professor se mexendo e não entendia absolutamente nada. Suando frio e olhando para o teto da sala de aula, percebi o quão errado eu estava sobre o que era, de fato, a História.

Ao longo do curso, com muito suor e algumas lágrimas (confesso), fui compreendendo o que é o fazer e o pensar histórico.

Algumas vezes, pensava comigo mesmo sobre como as coisas estavam do lado de fora da faculdade. Quantas pessoas acreditavam que a "História é só um monte de datas e livres interpretações", assim como eu entendia no início do curso?

No Brasil, de fato, há um considerável desconhecimento sobre o que é História. O ensino de história mais acelerado na Educação Básica, sem o esforço do educador ou mesmo o tempo para um maior aprofundamento, talvez sejam esses elementos as razões pelas quais existe uma maior ignorância acerca do pensamento histórico.

Tal ignorância se expressa, fortemente, na definição imprecisa dos conceitos.

Pra piorar, percebo que grande parte dos brasileiros não consegue fazer uma distinção clara entre o sujeito e o objeto, dentro de uma determinada realidade situacional.

Ao invés de definir um conceito pelo o que ele é, em sua grande maioria, o indivíduo define o conceito a partir de sua própria subjetividade, fazendo com que o sujeito esteja acima do objeto e não ao lado, respeitando a distância requerida.

A partir disso, vêm as distorções e os equívocos.

Um rapaz, da noite pro dia, passa a se ver como conservador.

O pouco do que ele sabe sobre o que é ser conservador, foi retirado de vídeos do YouTube ou de textos pequenos de grupos do Facebook.

Suas fontes de conhecimento não são livros ou anos de estudo em uma instituição de Ensino Superior, mas sim discursos verborrágicos de um homem que grita na frente de uma câmera, ou de teorias conspiratórias que vão do "uso de fetos na Pepsi" ao conhecido alarme de pânico: "os comunistas tomarão o poder!"

O tempo passa e esse rapaz se ajunta com outros garotos, que pensam de forma semelhante a ele. Todos se definem como conservadores, mesmo não entendendo o significado e o conteúdo do objeto.

Mas não é preciso, pois - segundo estes - basta se sentir como um conservador (novamente, o sujeito proeminente e o objeto esquecido).

Entretanto, o rapaz que se vê como conservador, na realidade, é só mais um reacionário.

Oxalá, alguém poderia pagar algumas viagens para esses jovens, a fim de que eles vissem de perto o que é ser um conservador. Passar alguns meses no Reino Unido, acompanhar o dia a dia de um político do Partido Conservador, tentar absorver - pelo menos - um pouco do conhecimento de uma senhora que, desde a sua infância, já passava horas estudando.

O verdadeiro conservador, além de evitar qualquer fonte informal de conhecimento (só de pensar, ele já têm ânsia de vômito e fortes náuseas), é uma pessoa que realmente estuda. Criado a partir de uma rigorosa disciplina, aos 10 anos já sabia grego e latim. Aos 15 anos, tinha lido mais livros que metade da população brasileira. Aos 17 anos, ingressava em Cambridge, no curso de Relações Internacionais. Aos 30 anos, já era Doutor e membro do Parlamento Inglês.

Só a partir de tudo o que ele estudou, com muito esforço e dedicação, ele enfim se tornou um conservador, não porque ele se sentia como um, nem porque um vídeo do YouTube mostrava um homem "mitando", mas porque a longa e difícil leitura dos pensadores clássicos, fizeram com que ele entendesse o objeto e estabelecesse uma relação íntima com ele.

Sabendo dessas coisas, olhando para aqueles que se dizem conservadores no Brasil, é possível afirmar que eles são o que falam?

Um senhor que foi ator da Globo, participou da "Casa dos Artistas" e se aposentou como ator pornô, da noite pro dia, tornou-se um conservador?

Um garoto de 22 anos, sem Ensino Superior completo, que solta uma rajada de palavras com dezenas de contradições?

Uma jornalista que propaga, diariamente, uma série de fake news, desinformando a população, e que agora desfila como deputada federal?

Não, não são e nunca foram conservadores. Das duas uma. Ou falta muita humildade ou um grau elevado de honestidade intelectual.

Além disso, o conservador utiliza o seu próprio conhecimento para solucionar os problemas ao seu redor. Ele retorna aos clássicos e ao saber dos antigos, trazendo a própria "Tradição" ao seu presente, apropriando-a como uma ferramenta política, a fim de implementar mudanças e aplicar as suas ideias.

Em contrapartida, diferente do conservador, o reacionário evita a absorção e a aplicação do conhecimento tradicional, uma vez que ele vê a leitura de um longo livro como algo "maçante e cansativo". É mais rápido e fácil ligar o computador e assistir a um vídeo de um cara barbudo gritando. Para cada palavra do "YouTuber", o reacionário diz "amém", não questionando uma vírgula, nem criticando qualquer palavra dirigida para ele.

Os vídeos e os textos que o reacionário prefere, geralmente, possuem um teor escatológico e "apocalíptico". O medo e o pânico de estar envolvido em uma "trama conspiratória", contraditoriamente, são os elementos que mais atraem o reacionário.

Ele conversa com seus amigos e familiares e, aos poucos, passa a falar igual ao Youtuber que ele acompanha todos os dias. Em seus discursos, o reacionário busca colocar as pessoas ao seu redor dentro de sua "realidade conspiratória", tentando trazer medo e pânico à mente de cada uma delas.

"Eles querem matar vocês!Temos que ter armas para nos defender!Imagina se ele entra na sua casa e estupra a sua filha!Eles querem transformar os seus filhos em rebeldes assassinos!"

Enquanto o conservador tem uma visão relativamente positiva e menos caótica em relação ao futuro, em que a esperança é maior do que qualquer sinal de pessimismo, o reacionário - por outro lado - tem a visão de futuro mais negativa possível.

Vivendo dentro de uma bolha, sempre com um atitude defensiva e com uma doentia necessidade de autoproteção, qualquer ação - por mais insana que seja - se torna legítima, desde que ela o proteja.

Tem que matar, para eu me proteger? Então mata!
Tem que impedir a entrada de imigrantes, para eu me proteger? Então manda eles de volta para a sua terra!
Tem que entrar metralhando essa favela, para eu me proteger? Então metralha tudo!

Do conhecimento, até as medidas planejadas e executadas, é possível notar a diferença abismal entre um conservador e um reacionário.

São raríssimos os indivíduos que são, de fato, conservadores no Brasil. O que há mais por aqui são reacionários, muito mais próximos ao pensamento do Datena do que às ideias de Edmund Burke ou Roger Scruton.

Ignorância, falta de humildade e profunda desonestidade intelectual são as marcas registradas de um reacionário.

Nunca imaginei que, um dia, um progressista como eu, estaria desejando que existissem mais conservadores no Brasil do que uma multidão de reacionários.

(*) Gabriel Zani é Historiador

OBS: Texto e imagem extraídos do blogue Saiba História, em 15/03/2019, embora originalmente postado na página Logados na História do Facebook.

sábado, 9 de março de 2019

Mulheres



DURANTE MUITO TEMPO, quando a sociedade era iminentemente patriarcal, nós decidíamos quase toda a vida das mulheres. Determinamos como elas deveriam falar, sentar, vestir, casar, se comportar. Hipocritamente, dividimos as mulheres entre as que eram para "comer" e as que eram para "casar". Fazíamos questão em público de tecer louvores à virtude da castidade feminina e da honradez da mulher casada enquanto no privado, satisfazíamos nossos instintos sexuais com as putas que nós chamávamos nas rodas de cidadãos respeitáveis de "vadias", "mulheres de vida fácil", "piranhas", "safadas". Curiosamente, por uma dessas ironias da história, essas tais hoje fazem questão de se autoafirmarem com todos os adjetivos que nós criamos para elas.

Durante séculos, determinamos que elas eram o "sexo frágil", quando nós sabíamos que elas possuíam uma fortaleza que nós jamais poderíamos ter. Determinamos que haviam assuntos de homens que mulher não deveria se meter. Que haviam atividades profissionais que não eram "coisas de mulher". Através da dependência financeira, decretamos que o lugar da mulher era cuidando da casa e dos filhos e do marido. Elas só precisam fazer isso para serem felizes enquanto nós, machos, íamos conquistar o mundo.

Porém, por serem elas o sexo frágil, as colocamos debaixo de nossas asas. Era nosso dever de homens fortes cuidar delas, defendê-las, deixá-las seguras. Violência machista sempre houve mas havia essa ideia de que nós, homens, éramos seus protetores e não coadunávamos com a atitude violenta de outros homens. Eram os tempos do amor romântico, do príncipe que ia salvar a mocinha do dragão, coisas que nós também inventamos.

A muito custo as mulheres agradeceram a tutela masculina e disseram "não queremos mais isso, queremos ter voz, queremos ir para a rua, queremos trabalhar, ter sucesso, e faremos isso concomitantemente ao cuidado do lar, porque ao invés do que nos fizeram acreditar, somos fortes". "Não vamos querer capar os machos - nós gostamos muito de machos - mas não vamos mais ser seus bibelôs". "Queremos conquistar o mundo junto com vocês". "Queremos que vocês mudem e que não pensem que lavar um prato vai te deixar menos macho".

Os muitos casos de feminicídios que temos visto, creio eu, são em parte motivados por essa quebra de tutela. Elas já não se vestem como nós queremos. Elas já não se comportam como nós achamos convenientes para uma "mulher honesta". Elas conquistaram e continuam conquistando, uma liberdade que sempre foi nossa. Elas estão no poder e se quiserem, estão também na cozinha. Para muitos homens isso é inadmissível. Como elas ousam dizer que não nos querem mais? Como elas ousam querer serem livres como nós? Como elas ousam não mais nos obedecer? Como elas ousam se comportar como as putas que nós só usávamos longe do nosso sagrado seio familiar?

Homens, "mas quem tem coragem de ouvir, amanheceu o pensamento...?"

* * *

Eduardo Medeiros, 09/03/2019.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Neste carnaval, mais do que nunca eu sou Mangueira!



Desde criança, eu já tinha duas agremiações pelas quais nutria certas afinidades. Uma era o Flamengo, time de futebol pelo qual meu pai torcia alucinadamente e que, desde os primeiros dias de vida, fez-me um seguidor do rubro-negro havendo me vestido com uma fralda com a estampa do escudo do clube. Já a outra simpatia que eu tinha era pela escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Ou simplesmente, Mangueira...

Entretanto, jamais fui um fã do Carnaval e nem cheguei a ter grandes paixões pelo futebol. Anualmente, sempre que rolavam os desfiles das escolas de samba do Rio de Janeiro, nos meses de fevereiro e março, torcia para que a Mangueira vencesse. Só que, até os tempos de adolescente, nunca me ligava no samba-enredo de nenhuma delas, sendo que me chamavam mais a atenção os carros alegóricos, algumas fantasias e, logicamente, as mulheres quase peladas cujos corpos e movimentos mexem com a libido de qualquer macho.

É possível que as três vitórias ocorridas durante os anos 80 dessa escola, que tem como símbolo  as cores verde e rosa, possam ter me induzido a torcer por ela, tendo em vista que, em certos momentos de nossa infância ou juventude, procuramos um campeão para nos referenciar. Sem contar que, em 1984, ano da inauguração do Sambódromo, a Mangueira foi a primeira a desfilar encantando multidões. 

Todavia, era inegável o talento dos poetas e cantores mangueirenses. Recordo muito bem de ainda ter pego personagens históricos da agremiação como o intérprete Jamelão (1913 - 2008) e a sambista da velha guarda da escola, Dona Zica (1913 - 2003), a qual fora esposa do fundador Cartola (1908 - 1980). Deste, porém, já não me recordo tanto, mas soube de seu vasto trabalho artístico através dos diversos documentários que até hoje se repetem nas transmissões da TV brasileira.

Pois bem. Em 2019, o samba-enredo da Mangueira, História pra Ninar Gente Grande, eu diria que está "dez, nota dez", como diz a famosa expressão relativa à apuração dos desfiles, criada por Carlos Imperial. Algo mesmo de tirar "a poeira dos porões", enaltecendo os heróis populares no lugar daqueles que sempre foram valorizados pela História tradicional. E a sua letra, de autoria do carnavalesco Leandro Vieira, começa justamente assim, mencionando dois grandes compositores do samba:

"Mangueira, tira a poeira dos porões
Ô, abre alas pros teus heróis de barracões
Dos Brasis que se faz um país de Lecis, jamelões
São verde e rosa, as multidões" 

Valorizando um país que "não está no retrato", a música faz menção da participação histórica das mulheres, dos valentes índios tamoios e dos mulatos. Cita o nome da guerreira negra do período colonial Dandara, a qual foi esposa do líder Zumbi dos Palmares, contando então uma versão diferente do que aprendemos sobre a libertação dos escravos, com uma interessante referência ao movimento abolicionista ocorrido anos antes na então província do Ceará:

"Brasil, o teu nome é Dandara
E a tua cara é de cariri
Não veio do céu
Nem das mãos de Isabel
A liberdade é um dragão no mar de Aracati"

Confesso que, se não houvesse visitado Fortaleza em outubro do ano passado e me inteirado um pouquinho sobre a História do lugar, tais versos do samba não teriam tanto sentido pra mim. Lá cheguei a conhecer o Centro Cultural Dragão do Mar que é uma homenagem ao líder jangadeiro Francisco José do Nascimento (1839 - 1914) que teve grande participação na abolição dos escravos em sua região, anos antes da filha de D. Pedro II sancionar a Lei Áurea.

Dando prosseguimento à letra, o samba da Mangueira finaliza exaltando o movimento dos caboclos na época da sangrenta Independência da Bahia de 02/07/1823, a resistência da população nos anos da ditadura militar e os nomes (no plural) de duas outras mulheres também negras:

"Salve os caboclos de julho
Quem foi de aço nos anos de chumbo
Brasil, chegou a vez
De ouvir as Marias, Mahins, Marielles, malês"

Luísa Mahin, segundo a Fundação Palmares, teria sido uma ex-escrava de origem africana, radicada no Brasil, que teria tomado parte na articulação de todas as revoltas e levantes de escravos que sacudiram a Província da Bahia nas primeiras décadas do século XIX, dentre as quais podemos citar a Revolta dos Malês (1835) e a Sabinada (1837-1838). Foi mãe do poeta e abolicionista Luís Gama havendo a forte crença de que a sua origem tenha vindo do povo Mahi, na Costa da Mina (região do golfo da Guiné), de onde viria o seu sobrenome.

Quanto à Marielle Franco, combativa vereadora da cidade do Rio de Janeiro que foi covardemente morta em março do ano passado, temos nela uma das mais recentes personagens da História brasileira e que precisa ser considerada como uma voz das mulheres, dos negros e dos homossexuais, apesar de haver silenciada pelo poder das milícias que oprimem comunidades. 

Além da sua notável desconstrução da História contada pelas elites brasileiras, a Mangueira trará para a Avenida uma outra novidade que será a sua primeira musa trans, quebrando assim os paradigmas de uma escola tradicional. Trata-se da jovem Patrícia Souza, de 25 anos, que exerce a profissão de cabelereira em Londres. 

Para quem não sabe, o desfile da Mangueira será hoje, pois está previsto para a segunda-feira de Carnaval, no dia 04 de março. Vamos, portanto, prestigiar a festa da verde e rosa, e para terminar o post, segue aí um clip do samba-enredo que foi gravado no YouTube, o qual anda fazendo um enorme sucesso.  



Ótima segunda-feira de samba, meus amigos!

OBS: Artigo inicialmente publicado ontem em meu blogue e reproduzido aqui com atualizações na parte final

domingo, 3 de março de 2019

Sexo e Carnaval



Por Hélio Couto

Quando se separa o sexo do amor, todo tipo de conseqüências ruins aparecem.  Lembrem que tudo que atrapalha nossa evolução afetiva, mental e emocional também é ruim pros negócios.

O sexo nos seres humanos tem de ser uma expressão de amor. Quando é separado da afetividade, causará problemas físicos, mentais e emocionais naquele que está manipulando ou fazendo sexo sem amor. A baixa auto-estima é inevitável. Desvalia, desmerecimento e vazio interior.

Um orgasmo sem afeto é nos seres que tem auto-consciência um ato biológico apenas e se o problema é descarregar essa tensão, qualquer masturbação resolve isso.

Sexo como agressão, poder ou domínio criará profundas somatizações emocionais e espirituais. Quando mais se faz isso mais se afasta da essência interior; da Fonte da própria pessoa. Essa é a visão do mais profundo nível da personalidade. Onde todos os problemas ou soluções estão.

Nossa sociedade está tão afastada do sentimento de amor com sexo e de sexo com amor que promove a divulgação e banalização do sexo como uma panacéia para tudo.

Porém a realidade nua e crua aparece quando se atende os clientes. Quando todo o trauma vem à tona. Quando aparece a verdade e são problemas e mais problemas na vida da pessoa. E que nenhuma atividade sexual sem amor conseguiu resolver. Só acrescentou mais problemas.

Vivemos numa sociedade de máquinas. De humanos separados do Amor, que agem como máquinas. E nenhum ser consciente pode fazer isso sem trazer sérias conseqüências para si. Aquela pessoa que quer provas, pode fazer essa experiência. Separar a consciência do amor e do sexo. Fazer sexo sem amor e doação. Sem se importar com o sentimento do outro, ignorando as necessidades do outro (lembra do dez-minutos-nos-melhores-dias?) e sentir o que está acontecendo com sua auto-estima e com sua vida. E fazer muito sexo sem amor. Muito. Nada de ser medíocre nem morno. E as pessoas nem imaginam à que ponto de realização sexual se pode chegar quando se junta Amor e Ressonância Harmônica!

Porque o sexo tem de ser uma expressão de amor?

Porque somos autoconscientes. A Única Consciência permeia toda a realidade. Só existe uma única consciência. Somos individuações dela. Nunca desconectados. Essa Consciência é Puro Amor. Qualquer ato contrário a isso é um ato contrário à própria essência do universo. O universo é criação em evolução. Qualquer coisa contrária à isso emite um pensamento e sentimento de descriação. A criação é ordem. A descriação é desordem. Isso em termos físicos, mentais e emocionais é grave. É o que se chama entropia psíquica. Entropia em física é o grau de desordem energética, perda de energia. Vivemos num universo neguentrópico (da desordem para a ordem). É por isso que existe ordem e harmonia no universo. Crescimento e evolução. O contrário seria o caos.

Quais as conseqüências disto na vida da pessoa?

O vazio interior.  O sentimento de não amar e não ser amado. O mais profundo anseio do ser humano é amar e ser amado. Tudo que ele faz em última instância é para conseguir isso. Como está separado da Fonte (em termos mentais) procura de todas as formas essa conexão. O amor promove essa união. Como se fechou para o amor só resta o sexo. E o sexo dura minutos. No caso do lado Yin da relação, a coisa é pior ainda, pois o ato vai até que o Yang tenha uma ejaculação. Ai acabou. As necessidades Yin precisam de muito mais tempo e afetividade. E ficam totalmente insatisfeitas. Fazem isso por uma esmola de amor e carinho, mas é um engano após o outro. E vão se machucando mais e mais. E se machucando. Pensam que fazendo isso conquistarão o Yang. Terrível engano. Fazer isso é a pior estratégia possível em conquista e sedução.

OBS: Créditos autorais da imagem ilustrativa atribuídos ao fotógrafo José Cruz/ABr, sendo que o artigo foi extraído do blogue do autor, Hélio Couto, conforme consta em http://www.xn--hliocouto-b4a.com/2012/02/sexo-e-carnaval.html

sábado, 2 de março de 2019

“A Amazônia não precisa ser conquistada; precisa ser respeitada”




No começo do mês passado, teve início um seminário organizado pela Secretaria Geral do Sínodo intitulado: “Rumo ao Sínodo Especial para a Amazônia: dimensão regional e universal”. Tal evento trata-se de uma das muitas iniciativas que a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos está realizando para preparar adequadamente o Sínodo Especial sobre a Amazônia, o qual terá lugar em Roma em outubro próximo.

Durante a ocasião, o bispo franciscano, Dom Evaristo Spengler, Bispo da Prelazia do Marajó (PA), falou a respeito do tema “Ecologia, Economia e Política”. Leia na íntegra o seu discurso:

Quero iniciar retomando as palavras do papa Francisco na Laudato Si’: “A ecologia estuda as relações entre os organismos vivos e o meio ambiente onde se desenvolvem. E isso exige que se pare para pensar e discutir acerca das condições de vida e de sobrevivência de uma sociedade, com a honestidade de pôr em questão modelos de desenvolvimento, produção e consumo. Nunca é demais insistir que tudo está interligado” (n. 138). É no âmbito deste paradigma em que “tudo está interligado” que vou considerar a relação entre ecologia, economia e política, visto que “a ecologia humana é inseparável da noção de bem comum” (LS, 156).

1. A política enredada nas malhas de uma “economia que mata”

“Essa economia mata”, afirma de maneira contundente o Papa Francisco na Evangelii Gaudium n. 53. Trata-se de uma “economia da exclusão” (n. 53-54) caracterizada pela “nova idolatria do dinheiro” (n. 55-56), criando uma situação em que o “dinheiro governa em vez de servir” (n. 57-58) e “a desigualdade social gera violência” (n. 59-60).

A economia é aquela atividade humana pela qual, interagindo e utilizando racionalmente dos bens e serviços naturais, garantimos nossa sobrevivência, abertos à comunidade de vida e às gerações futuras. O drama da economia atual é que o sistema financeiro passou a ocupar todos os espaços. De uma economia de mercado passamos para uma sociedade de mercado. Essa é a grande transformação, das maiores e mais perigosas da história. Passamos de uma sociedade com economia de mercado para uma sociedade dominada pelo mercado. Todas as atuais decisões políticas visam favorecer as demandas do Mercado. Nesse contexto, tudo virou mercadoria, desde os bens naturais, as relações humanas e até as coisas mais sagradas da religião. De tudo se pode obter lucro, tudo pode ser levado ao mercado, e no mercado tudo é negociável. Esse tipo de economia, hoje mundializado, transformou o planeta Terra num grande mercado. Nele tudo está à venda. A Terra vem sendo submetida a uma exploração de todos os seus ecossistemas em função do enriquecimento de alguns e do empobrecimento de bilhões de pessoas. Segundo relato da ONG Oxfan 2019, 26 indivíduos possuem riqueza igual a 3,4 bilhões de pessoas.

Por exemplo, algo pensado no Brasil para preservação ambiental, o Cadastro Ambiental Rural (CAR), também passou a ser usado para fins comerciais. O chinês Lap Chang cadastrou um CAR sobre uma área de 58 mil hectares, no Marajó, território da minha Prelazia, onde vivem povos tradicionais. Em função disso, vendeu crédito de carbono para uma empresa inglesa, no valor de mais de 200 mil dólares.

Essa economia em que tudo virou mercado produz duas funestas injustiças. Uma social, produzindo incomensurável pobreza e miséria; e outra, uma injustiça ecológica, dizimando os bens e serviços naturais, muitos deles não renováveis. Por esse motivo, tem razão o Papa Francisco quando afirma de maneira precisa: “Não há duas crises separadas: uma ambiental e outra social; mas uma única e complexa crise sócio-ambiental. As diretrizes para a solução requerem uma abordagem integral para combater a pobreza, devolver a dignidade aos excluídos e, simultaneamente, cuidar da natureza” (LS, 139).

De fato, a economia atualmente é dominada pela economia de acumulação desenfreada e pelo mercado financeiro. Organizou-se de tal forma a economia que beneficia os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Na esteira da Doutrina Social da Igreja somos desafiados a buscar uma política de participação de todos e para todos, e também para com a natureza. A ecopolítica tem por escopo organizar a sociedade e a distribuição do poder de forma a implementar estratégias de sustentabilidade para garantir a todos o suficiente e o decente para viver. Isso supõe pensar a política, no sentido dos documentos sociais da Igreja, como a busca comum do bem comum. Contudo é necessário incluir nesse bem comum não apenas os seres humanos, mas toda a comunidade de vida.

Declarando que “o atual sistema mundial é insustentável” (n. 202), o Papa Francisco, por 35 vezes na Laudato Si’, conclama para “novos estilos de vida” (n. 163; 194 passim) e novas formas de consumo de sobriedade compartilhada. É necessário e urgente a construção de um paradigma de desenvolvimento alternativo ao atual modelo hegemônico. Trata-se de conversão do atual modelo de desenvolvimento global. O modelo alternativo de desenvolvimento global deverá considerar o meio ambiente como um bem coletivo, a defesa do trabalho e dos povos originários, entre eles os indígenas da Amazônia, o papel dos movimentos sociais e das organizações da sociedade civil.

Sem negar os avanços da tecnociência na melhoria das condições de vida e do bem-estar das pessoas, não podemos nos deixar dominar e ser controlados por ela. A ciência, a tecnologia, assim como a economia, deve estar a serviço da vida, e não impor o ritmo à vida.

2. Ecologia, economia e política na região amazônica brasileira

Desde o período da invasão dos ibéricos, a região amazônica se encontra à mercê de políticas coloniais. Entre os séculos XVI-XIX, o colonialismo extrativista teve fortes incidências sobre povos autóctones e bens naturais mediante uma injusta expropriação. E nos séculos posteriores, com os Estados modernos, práticas e mentalidades colonialistas continuam mediante a exploração de populações, culturas e territórios dessa imensa região. Há séculos, distintas formas de exploração da Amazônia vêm sendo produzidas e, para a fatalidade das suas populações, todas elas com interesses colonizadores que se manifestam mediante dois expedientes: exploração de sua população e redução da região a mera reserva de “recursos” naturais, como território a ser conquistado, explorado e comercializado para a obtenção de lucros.

A Amazônia já resistiu a grandes projetos, de monocultivos e de ocupação. Falando do Brasil, em 1926, Henry Ford comprou 3 milhões de hectares de terra ao longo do rio Tapajós, contratou mais de 3.000 operários, derrubou a mata e plantou 70 milhões de mudas de seringueira para extrair borracha. Um fungo invisível, com enorme capacidade de multiplicação, fez fracassar o projeto. O monocultivo, mesmo sendo de uma espécie amazônica, foi rejeitado pela floresta. Em 1967, Daniel Keith Ludwig montou um projeto milionário junto ao rio Jari, numa área de 3,6 milhões de hectares para produção de celulose com espécies de outras regiões, e agropecuária. A floresta resistiu e novamente um fungo foi responsável pelo fracasso de 22 empresas envolvidas no projeto. Em 1975, a Volkswagen desmatou 55.000 hectares usando bombas de napalm e desfolhantes químicos. Teve grandes prejuízos e abandonou o projeto. A natureza amazônica resistiu e resiste incansavelmente. A prepotência humana teve que se curvar e se humilhar muitas vezes à grandeza e à força do bioma amazônico. Contudo, hoje, os ataques são mais graves, porque os ataques são muitos, simultâneos, de muitas frentes e com grandes tecnologias. São megaprojetos de mineração, energia, petróleo, agricultura, pecuária, madeireiras, infra-estrutura, como hidrovias, rodovias, ferrovias e portos. São projetos de governos e de grandes conglomerados econômicos e de diversos países.

Trata-se a Amazônia como se fosse o celeiro do mundo, onde se pode retirar ou produzir o que quiser. Isso não é verdade. A Amazônia é um bioma frágil que tem seus próprios mecanismos internos de sobrevivência e resistência. Outros consideram ainda a Amazônia como o pulmão do mundo, como se fosse uma grande fábrica de oxigênio.  Na verdade, a floresta é um grande equilíbrio dinâmico, no qual tudo é aproveitado e continuamente reciclado. O oxigênio que ela produz, ela mesmo consome. Mas ela funciona como um grande filtro que absorve dióxido de carbono, o principal gás do efeito estufa, um dos fatores responsáveis pelo aquecimento global e das mudanças climáticas. Caso a floresta seja derrubada, seriam liberados para a atmosfera cerca de 50 bilhões de toneladas de carbono por ano, que a floresta, em pé, mantém sequestrados. A derrubada provocaria uma dizimação em massa. Outro fator é que a floresta é importante para o equilíbrio da umidade e das chuvas que sustentam a própria floresta. A floresta sustenta a chuva e a chuva sustenta a floresta. Além disso exporta umidade, via aérea, para outros biomas.

Vigoram hoje, na Amazônia, dois modelos de desenvolvimento. Um é predatório, da extração de madeira, da mineração, do petróleo e energia, da pecuária, do monocultivo, que tem como consequências o desmatamento (20% da floresta já estão desmatados), concentração de renda, trabalho escravo, envenenamentos do solo e das águas, diminuição das chuvas (nas áreas desmatadas a estação seca se prolonga num ritmo de seis dias a cada dez anos), conflitos de ocupação com a expulsão dos povos da floresta, desrespeito às leis, morte de lideranças, ambientalistas e agentes de pastoral. O outro modelo é o sócio-ambiental, ecológico, direcionado aos povos da floresta. Tem como consequência a redistribuição de renda, a preservação da floresta e da biodiversidade, a socialização da terra e dos recursos, a distribuição de renda, a preservação de populações tradicionais, a fixação do “homem” na floresta, e um mercado promissor de frutas, cocos, artesanatos, polpas, fitoterápicos, óleos, castanhas, ecoturismo, entre outros. Este modelo deve ser fortalecido pelos nossos projetos pastorais. Ainda é um desafio estudar e conhecer toda a biodiversidade e o bioma amazônico. Bem dizia Chico Mendes, o mártir por defender a floresta, assassinado em 22 de dezembro de 1988: “A floresta em pé é mais produtiva do que a floresta tombada”. Ou, como diziam os seringueiros da Amazônia, e tantas vezes repetiu a Ir. Dorothy Stang, também mártir, assassinada em 12 de fevereiro de 2005 por defender os povos da floresta: “A morte da floresta é o fim da nossa vida”.

Para o modelo predatório, a Amazônia tem tudo o que o mercado precisa para manter um crescimento linear e constante, e tudo em abundância: biodiversidade, terras, água, floresta, petróleo, madeira, minérios, fontes de energia, que são de fácil acesso. E é assim que ouvimos falar da Amazônia como a última fronteira do agronegócio e da mineração. Essa economia predatória não poupa nem as pessoas. Tráfico de pessoas, exploração de mão de obra infantil, exploração sexual, são comuns na Amazônia. A economia transforma em mercadoria não apenas os corpos, mas explora e manipula sentimentos, sonhos, desejos, e a confiança das pessoas, seduzidas por falsas e enganosas promessas. Aqui, Vossa Eminência Cardeal Baldisseri, eu abro um parêntesis para dizer que trago um apelo de parte da Igreja da Amazônia, que junto com diversas organizações da sociedade civil organizada atuam na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes. Eles solicitam ao Sínodo para a Amazônia um olhar especial e misericordioso para a problemática da violência sexual contra crianças e adolescentes, sobretudo nas áreas dos grandes projetos econômicos presentes na região.

A Amazônia não precisa ser conquistada, nem desbravada, precisa ser respeitada. O sistema amazônico não funciona nos moldes de competição, funciona nos moldes de cooperação, como todo o sistema Terra. A questão não está em conquistar a Amazônia, mas em conviver com a Amazônia. A política deveria estar a serviço da boa convivência social e da boa convivência ambiental, mas ela prefere estar a serviço da economia. Podemos aprender das populações tradicionais da Amazônia. Há vestígios de presença humana na Amazônia há pelo menos 12.000 anos. Populações tradicionais desenvolveram grandes e complexas sociedades. Em períodos mais recentes chegaram outros habitantes, que também foram acolhidos pela floresta. Os povos da floresta não são ingênuos nem ignorantes. Como seres humanos, eles interagiram com o seu meio. Têm uma sabedoria, uma cultura, convivem com a floresta, interferem na floresta, vivem da floresta e das águas. Povos tradicionais e floresta se condicionam mutuamente, criaram relações e desenvolveram uma florestania, numa teia intrincada de reciprocidade, intercâmbio e cumplicidade. Isso também é política, ou melhor, eco-política, eco-logia e eco-nomia. Eco do grego oikos lar, casa, como insiste o Papa Francisco, “nossa casa comum”. Os povos da floresta, a veem como algo vivo, um sujeito, parte da comunidade que deve ser respeitada. Ao contrário, a Cultura Ocidental Moderna vê na floresta e no imenso território apenas um objeto, algo a ser conquistado, manipulado, transformado em matéria prima para ser explorada, negociada, consumida, usada e descartada.

Já não podemos confiar na política vigente. Ela é submissa e serviçal ao grande capital e aos megaprojetos para a Amazônia. Faz isso sem ética e sem escrúpulos. Já não podemos confiar na economia de mercado. Ela é insaciável e transforma tudo em mercadoria. Talvez tenhamos que ouvir mais a ciência, porque hoje são os cientistas que nos advertem sobre os riscos que corremos, inclusive de autodestruição, em consequência desse modelo de uma economia predatória.

Mas antes dos cientistas, pela fé, cada cristão é convidado a assumir a defesa da casa comum, porque reconhece tudo como criatura de Deus. Há oito séculos, São Francisco de Assis cantava louvores a Deus, sentindo-se irmão de toda natureza criada. Louva a Deus pela Terra, “Irmã e Mãe, que nos sustenta e governa”. Essa percepção está em profunda comunhão com a cosmovisão de povos originários da América, que chamam a terra de “Pachamama”, a grande mãe.

As florestas são um fator importante na terra, para o equilíbrio dos climas, temperatura e das condições favoráveis à vida, entre elas a vida humana. As florestas refrescam a terra. Os cientistas dizem que a Terra precisa conservar pelo menos 50% de suas florestas nativas para manter o clima e o ambiente favorável à vida humana. As florestas estão ameaçadas. Hoje só restam preservadas 22% das florestas; menos da metade do que o postulado como necessário. A Amazônia representa 1/3 de todas as florestas que ainda existem. Daí a importância da Amazônia. É urgente respeitá-la, preservá-la e cuidá-la. 

Conclusão: a utopia vencerá

A compreensão da Terra como Casa Comum deveria oferecer a base para políticas globais de controle do aquecimento global, das mudanças climáticas, da preservação das florestas, do cuidado da casa comum e o limite para a economia de mercado. Tenho suspeitas de que nem os economistas globais, nem os políticos nacionais serão capazes de fazer isso. Mas tenho certeza que os povos da floresta, os povos originários, com a proposta do “bem-viver” e as comunidades dos discípulos de Jesus, com a proposta do Reino de Deus, junto com outros aliados que sabem que a Amazônia é criação de Deus, serão capazes. Isso pode parecer um sonho, mas são os sonhos que alimentam as utopias. Nós sonhamos com a utopia do Reino anunciado por Jesus. Como diz uma canção de nossas Comunidades:


“Sonho que se sonha só, pode ser pura ilusão.
Sonho que se sonha juntos, é sinal de solução.
Então, vamos sonhar, companheiros, sonhar ligeiro, sonhar em mutirão”.


Paz e Bem! Obrigado! 

OBS: Texto e imagem extraídos do Portal dos Franciscanos, conforme consta em https://vidacrista.franciscanos.org.br/d-evaristo-a-amazonia-nao-precisa-ser-conquistada-precisa-ser-respeitada/

Viva São Cosme e São Damião!

Aí um texto publicado no Facebook pelo historiador e deputado Chico Alencar que confere um bom sentido às crenças religiosas e aos costume...