A polêmica cena das drags na abertura das Olimpíadas

 

 

Até hoje as pessoas ainda não pararam de comentar sobre a representação do célebre quadro A Última Ceia, de Leonardo da Vinci, durante a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris, ocorrida na sexta-feira passada (26/07). Durante o evento, a cena que recorda o último momento de comunhão entre Jesus e seus discípulos foi protagonizada por drag queens, num interessante desfile de moda.


Para muitos, inclusive os franceses mais conservadores e o episcopado católico, tal encenação teria sido uma ofensa à religião e aos valores cristãos, tendo outras apresentações também despertado críticas da extrema direita. Segundo reagiu a eurodeputada francesa Marion Marechal nas redes sociais, sobrinha de Marine Le Pen, que é a atual presidente do Reagrupamento Nacional:


"Difícil apreciar as estranhas cenas entre Maria Antonietas decapitadas, um trouple [trio amoroso] que se beija, drag queens, a humilhação da Guarda Republicana obrigada a dançar com Aya Nakamura, a feiura dos trajes e das coreografias"


A meu ver, considerando o basilar direito à liberdade de expressão, do qual decorre o dever de respeitar o livre exercício da criação, produção e divulgação de obras de arte, sem submeter-se a censura, jamais veria qualquer ilegalidade na referida encenação ainda que fosse executada aqui no Brasil. Aliás, já tivemos eventos de Carnaval polêmicos envolvendo a figura de Jesus, como foi nos desfiles da Mangueira e da Gaviões da Fiel, os quais despertaram a ira de muitos fundamentalistas cristãos.


No caso da abertura dos jogos olímpicos deste ano, confesso que não me senti nem um pouco ofendido com a encenação das drag queens. Muito pelo contrário, vi ali uma importante mensagem de inclusão.


Ora, a Santa Ceia, antes de se tornar uma tradição religiosa, foi um ato de comunhão entre Jesus e os seus discípulos na noite anterior à sua crucificação. Ao distribuir o pão e depois o vinho, respectivamente simbolizando o seu corpo e o seu sangue, o Mestre referenciou-se ao sacrifício que faria em favor da humanidade:


"Tomando o pão, deu graças, partiu-o e o deu aos discípulos, dizendo: "Isto é o meu corpo dado em favor de vocês; façam isto em memória de mim". Da mesma forma, depois da ceia, tomou o cálice, dizendo: "Este cálice é a nova aliança no meu sangue, derramado em favor de vocês." (Evangelho de Lucas 22:19-20; NVI)


Pois bem. A Ceia representou uma inclusão daqueles homens simples e humildes no Reino de Deus. Pessoas que não ocupavam altas posições no meio político, religioso ou econômico da sociedade da época, dentre as quais havia rudes pescadores e até um ex-cobrador de impostos, foram as primeiras a se tornar participantes de uma sagrada comunhão.


Assim, foi por toda uma humanidade perdida que Jesus morreu e nos propôs uma nova aliança, conforme bem ensina o Novo Testamento da Bíblia. Tal sacrifício incluiu não só os discípulos presentes no cenáculo como também todos os demais seres humanos do planeta, independentemente de gênero, raça, origem, nacionalidade, condição social, profissão e opção sexual.


Caros leitores, por acaso seria ofensivo se alguém indagasse que Jesus também verteu o seu sangue na cruz também pelas drag queens?!


Entretanto, apesar de ter essa visão e, como já dito, não me sentir em nada ofendido pelas cenas da abertura dos jogos olímpicos de Paris, faço aqui o meu juízo de ponderação acerca do que seria mais adequado praticar num evento do tipo.


Vale recordar que, desde a Antiguidade na Grécia, os jogos pan-helênicos estiveram associados com o antigo conceito grego de "trégua olímpica" (ἐκεχειρία, ekecheiria). Desse modo, para que as competições pudessem ocorrer, as guerras eram suspensas, permitindo que os atletas viajassem até à cidade de Olímpia, disputassem os jogos, e retornassem para suas terras de origem em segurança.


No final do século XIX, quando os jogos olímpicos renasceram, tal proposta não foi esquecida. Pierre de Coubertin, o segundo presidente do COI (1896-1925), acreditava na possibilidade de promover paz por meio do esporte: 


"Exportemos remadores, corredores e esgrimistas: eis o livre comércio do futuro, e no dia em que for introduzido nos costumes da velha Europa, a causa da paz terá recebido um novo e poderoso apoio"


Dentro desse contexto, não ignoraria que o tema da inclusão social se torne pertinente a uma ideia ampla de paz, considerando que esta não se restringiria apenas a um mero armistício entre as nações. Contudo, precisamos refletir acerca da maneira como um assunto vem a ser pautado para que não gere conflitos num momento em que se propicia um entendimento comum.


Tratando-se as Olimpíadas de algo muito mais amplo do que os desfiles do Carnaval brasileiro, em que uma cidade se torna temporariamente a anfitriã de várias competições esportivas internacionais, penso que o evento deveria ser uma espécie de "território neutro", muito embora não exista uma total neutralidade nas ações humanas. Logo, diferentemente das ruas, onde as pessoas se manifestam politicamente, creio que o bom senso deve conduzir a recepção do público numa competição esportiva, criando uma atmosfera em que possamos pausar até mesmo as nossas questões ideológicas.


Em todo caso, não podemos deixar de reconhecer o quanto foi bonita a cerimônia de abertura das Olimpíadas de Paris 2024. Apesar da chuva, vimos um inesquecível passeio pela capital francesa, tendo se tornado uma inovação com barcos navegando pelo rio Sena, levando delegações, autoridades e celebridades a céu aberto, fora do confinamento dos estádios.


Viva as Olimpíadas! Que a paixão pelo esporte consiga transcender fronteiras, culturas e ideologias políticas, unindo o mundo em um só coração!

Comentários

Eduardo Medeiros disse…
Rodrigo, tem algumas questões aí.

Primeiro, essa cerimônia foi ruim. Uma cerimônia ao ar livre dispersa o que deveria ser um congraçamento de vários atletas de vários países como acontece nas aberturas em estádios.

Segundo, se a representação do quadro de Da Vinci fosse com o objetivo de passar uma mensagem de inclusão, teriam colocado ali um homem representando Jesus ao lado até que das drags e dos trans. Aliás, a sociedade secularista hoje tem fetiche por trans, gays, inter, etc.. e uma má vontade imensa com tudo que seja cristão.

Então, eu creio que o objetivo era mesmo transgredir. Mandar uma mensagem de que a cultura cristã está sendo colocada de lado para a ascensão de uma nova cultura totalmente relativista e identitarista (outro fetiche moderno).

Veja, a skatista brasileira Raysa, medalhe de bronze, pode ser punida por ter mandado uma mensagem em libras sobre Jesus. Duas atletas muçulmanas não puderam participar das aberturas porque na França é proibido qualquer símbolo religioso em entidades públicas.

Meio paradoxal, não? A rua da França é uma entidade pública governamental? As olimpíadas é uma entidade governamental?

Tá tudo meio paranóico. Porque então colocaram aquela cena patética da ceia cristã cheia da turma identitária? Não é proibido fazer alusão a religião no espaço público francês?
Caro, Edu. Realmente houve contradições, porém a cerimônia foi bonita. A mim agradou como arte, apear de que houve mesmo transgressão fazendo a extrema direita pular de alegria pela oportunidade de entrar em mais um embate em que a maioria acabou por reprovar a encenação das drags.