A NOVA ERA DA INTOLERÂNCIA

 





Excomungados, banidos e proibidos: a nova era da intolerância

A esquerda identitária chega à universidade para tentar reeducar professores


Wilson Gomes

Professor titular da UFBA (Universidade Federal da Bahia) e autor de "Crônica de uma Tragédia Anunciada"


O princípio da tolerância tem dois componentes: as formas de vida são essencialmente diversas; a decisão de que uma fé, doutrina ou obra é falsa não é critério legítimo para desrespeitar quem a sustenta, proibir a sua existência ou atuar de forma autoritária ou violenta contra ela.

A tolerância se dá quando se reconhece que o direito que o outro tem de manter uma convicção, mesmo que eu não a considere verdadeira ou edificante, não é menor que o meu direito de sustentar convicção diversa.

Estamos vivendo uma nova era da intolerância? Tudo indica que sim.

Há poucas semanas, a representação discente do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da UFBA fez abaixo-assinado para que fosse removido um quadro do pintor espanhol Miguel Navarro y Cañizares, "Alegoria da Lei Áurea", que é parte do acervo do casarão onde funciona a Escola de Belas Artes.



A escola, uma instituição fundada em 1877 pelo próprio mestre espanhol, deveria retratar-se imediatamente por ter esse quadro exposto em suas velhas paredes, além de retirar o nome do pintor da sua galeria Cañizares, "como forma de reparação histórica". A representação de um "gesto de suposta benevolência das elites brancas e, concomitante, de subalternização de pessoas negras" seria intolerável.

Assim, o quadro deve ser enclausurado, para que a ninguém ofenda ilustrando um passado que não queremos ver ou refletindo uma época em que não se pensava como nós.

Há poucos dias, o governo de Santa Catarina resolveu banir das bibliotecas escolares nove títulos, escolhidos aleatoriamente segundo o critério do censor. Por quê? Não se sabe nem se diz. Livros fazem um mal danado a quem os lê, como sabe todo censor, e não há jeito de impedir que instilem maldades sem evitar que sejam lidos.

Não faz muito tempo, quando Sérgio Camargo reinava na Fundação Cultural Palmares sob Bolsonaro, Marco Frenette listou em nada menos que 74 páginas os livros da fundação destinados ao banimento.

A lista de livros, quadros, exposições, espetáculos, palestrantes, cantores, comediantes considerados merecedores de rogo, proibição, boicote e assédio, somada ao rol de professores, autores e artistas cancelados e demitidos por pressão e ação de conservadores nos últimos oito anos superariam facilmente as 74 páginas de Frenette. A lista da esquerda não é muito menor. Mudam as justificativas, resta a intolerância.

Na semana passada, o professor titular de sociologia da Unifesp Richard Miskolci, autor de "Batalhas Morais", especialista em gênero e sexualidade, foi declarado "persona non grata no âmbito epistemológico e ético do transfeminismo brasileiro".

Esse tipo de declaração, no âmbito em que faz sentido, tem como efeito declarar que uma pessoa não é bem-vinda em um país, sendo obrigada a deixar esse território sem direito de retorno. Miskolci foi banido de um território acadêmico, sua presença passou a ser considerada "inaceitável e contraditória".

O crime? Defendeu argumentos contrários a "conceitos fundamentais do transfeminismo, como a cisgeneridade". Como se atreve um cientista a defender teses contrárias a dogmas?

Quem enfrenta dogmas não é um racionalista, como pretende toda a tradição ocidental desde a filosofia grega, mas um negacionista, um (não se assustem, mas foi o que escreveram) "epistemicida". Negar um conceito é "epistemologicamente violento" e pode ser instrumentalizado "por movimentos autoritários e conservadores", não democráticos, nem progressistas e tolerantes como nós que o declaramos pária.

Em um seminário sobre liberdade de cátedra, na semana passada, uma professora lamentava comigo as irrupções de autoritarismo, dogmatismo e sectarismo que dominam a esfera pública, argumentando, contudo, em favor da crença iluminista de que a educação teria o condão de reparar essa situação.

Somos professores, é da nossa natureza acreditar que mais e melhor educação cura tudo.

Mas como, se a irrupção da intolerante extrema direita é um fenômeno que atinge em cheio sociedades bem-educadas? Se a esquerda identitária, a quem se estenderam tapetes vermelhos para que entrasse na universidade, demonstra não ter vindo para ser educada, mas para reeducar os professores dóceis e castigar os renitentes? Se chegamos ao ponto em que um foro com reivindicações científicas defende que há teses que não podem ser cientificamente desafiadas sob pena de excomunhão?



Comentários

A intolerância cresceu de uma tal maneira no Brasil que a sociedade hoje se tornou irreconhecível. No entanto, vejo por parte da direita atitudes muito piores. Falando nas universidades, eis que, recentemente, uma comissão da UFRGS decidiu pela expulsão de um aluno denunciado por racismo contra professora. O universitário teria lhe dito que a docente "não sabia qual era o lugar dela" e também teria falado que ela "continuaria sendo perseguida e odiada". Hoje, infelizmente, temos inúmeros casos de racismo, intolerância religiosa, homofobia e violência contra mulheres, sendo que o ex-presidente foi quem, a meu ver, muito contribuiu para esse quadro.